Opinião: Incomodidades da Cultura

Posted by
Spread the love

A História é cruel. Por muita relevância que os responsáveis administrativos possam ter na vida dos administrados, nunca o futuro – que lhes sobrevirá – achará graça a fixar-lhes os passos. Claro que, entretanto, seremos confrontados com os actos, os humores, os decretos, as preferências, os despeitos, as decisões – pois não será o martírio certeza de quem passa no mundo? – mas deles, cedo ou tarde, se apagará inevitavelmente o rasto no recordatório geral. Cruel que a reconhecemos, é esta História sábia à sua maneira, às vezes em paradoxo. Dela tem a Cultura muitas razões de queixa, pois se é certo ser a existência inteligente dos humanos um lugar de muita provação, não é menos ser seu (dela, Cultura) o dom da eternidade. Dos tempos todos os vindouros saberão menos dos mercadores de sucesso do que dos artistas de antigamente. De António José da Silva, o Judeu, por exemplo, chegou ao século XXI o nome e a obra. E mais chegaria não fora a fogueira impedir-lhe o viver além. Não sabemos nada, porém, de quem acendeu a fogueira – nem nome, nem currículo, nem nada – forçoso que seja reconhecer, por elementar e macabra justiça, tratar-se de um funcionário cumpridor, capaz de impedir prejuízos para o reino, mesmo que tal significasse tirar a vida – dos impedimentos o mais eficaz.
A História, cruel que vá permanecendo, não é imune aos amaciamentos a que os povos a obrigam. Protagonistas também dessa transformação, os discípulos do Judeu multiplicaram-se e espalharam a sua arte por todo o lado. E foram mais longe: por interpostas mãos inscreveram na Constituição da República que “incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais, incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio”. Por isso reivindicam o direito a serem reconhecidos nos exactos termos da Lei maior, recusando um sistema de apoio à cultura que é um misto de acto de caridade e concurso de talentos, como quem amplia para a dimensão nacional, com júris, pontuação e tudo, a efemeridade das “chuvas de estrelas”.
Perante o protesto os governantes disfarçam e os funcionários incomodam-se. É disso se trata na Petição “Sobre o “incómodo” da Directora Regional da Cultura do Centro: apelo ao Ministro da Cultura”. Perseguindo a velha determinação de pôr os pontos nos is sempre que os ditos perdem a pinta, quem assina a petição recusa a ideia de que a Cultura é uma actividade de pedinchice; e opõe-se à convicção de que o financiamento da Cultura constitui um fardo (um “incómodo”) para a administração central.
Podia tratar-se de palavras infelizes. Mas não. Trata-se de convicções profundas – ideologia, portanto -, portadoras do pensamento mesmo que aboliu, com arrogância malfeitora, o Ministério português da Cultura. O Ministério repôs-se, mas as políticas tardam. Por isso é essencial a nossa assinatura, como quem acrescenta a voz – pequena que seja – às vontades grandes da boa e velha História.

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.