Opinião: Manhãs da TV ou a educação para totós

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Manuel Rocha

 

Há quem acorde para o mundo nos programas da TV. E com aparente razão, já que o ecrã parece uma janela aberta para as existências dos humanos, desde a preparação de um refogado aos requebros do Despacito. Quem sai para a vida cedo, e tarde regressa a casa, corre o risco de nunca vir a saber “histórias de vida” que (com a justiça que é a sua) são apresentadas como exemplo de bem-ser para o comum dos mortais. Foi uma dessas histórias que uma jovem de que não recordo o nome levou ao canal primeiro do nosso cardápio televisivo. Educadora, a moça, andava por cá desconsolada com a vida, não se sabe se por razões laborais ou de amor não correspondido. O que ficou a saber-se é que a jovem rumou a um desses países africanos pobres, em que as funções do Estado são substituídas por ONGês de excelentes intenções e modestos resultados, uma espécie de placebo social. Ficará por lá um tempito mais, presume-se que até lhe passar o enjoo das vidas lusitanas, ou o esgotamento da paciência para as incomodidades de lá longe. Na despedida deixou uma mensagem, com a autoridade que julga ter adquirido na observação de vidas mais pobres do que aquela de que fugiu: “devemos aprender a ser felizes com o que temos”. Não gostei da mensagem, e zapei dali para fora. Antes tivesse ficado, porque no outro canal noticiava-se a venda da mansão do casal Jolie-Pitt – uma catrafiada de quartos e casas de banho, piscina e área de churrasco, a vista sobre o oceano. Zapei de novo, a fugir do contraste entre as imagens da palhota convertida em sala de aula e a sala de estar da Angelina, mas fui desembocar no relato das festas natalícias dos famosos nacionais e dos ainda mais famosos estrangeiros, entre famílias reais e abastados empreendedores.
À vista do espetáculo do luxo e respetiva ostentação, aquele “devemos aprender a ser felizes com o que temos” revelou-se tosca provocação, uma espécie de reinvenção do “pobretes mas alegretes” de má memória e pior consequência. Já não fui a tempo de gritar para o ecrã que a lição a retirar neste mundo não é a de “viver felizes com o que temos” – a mensageira tinha já zarpado para o seu mundo real de bolo-rei e prendas de Natal. A lição urgente é antes a da obrigação de lutar pela dignidade máxima, neste nosso Planeta em que 1% dos mais ricos tem mais riqueza que o resto dos humanos; em que apenas oito pessoas têm tanta riqueza como a metade mais pobre da população mundial; em que o rendimento dos 10% mais pobres aumentou menos de três dólares por ano entre 1988 e 2011, enquanto que o dos 1% mais ricos multiplicou 182 vezes aquele valor; em que o presidente de uma empresa cotada na Bolsa de Londres ganha tanto por ano como 10 mil trabalhadores de uma fábrica no Bangladesh. Nos próximos 20 anos, 500 pessoas deste mundo irão deixar aos seus herdeiros cerca de 2,1 mil milhões de dólares, uma soma maior do que a economia da índia, e 10 vezes mais do que a economia portuguesa. Enquanto isso, talvez a nossa turista social convença os meninos da choupana transformada em sala de aula de que mais vale ter um chão como cadeira do que bombas de primaveras árabes caindo nos telhados de sírias e líbias distantes. Gostaria tanto de lhe poder dizer que a felicidade pode precisar de lugar para se sentar e pousar o caderno…

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