Opinião – Arq. Vasco Cunha, “face-à-vista”

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Paulo Simões Lopes

Apanho a história a meio, já em 1956, quando a Câmara de Matosinhos encomendou o projeto da Quinta da Conceição a Fernando Távora, para relevar os seis jovens, aprendizes do seu atelier, que na altura colaboraram na reconstrução dos elementos pré-existentes e na sua transição para o presente sem os desenquadrar do passado: Alberto Neves, Álvaro Siza, José Pacheco, Francisco Figueiredo e Vasco Cunha. Foi aqui, ainda como aluno da Escola Superior de Belas Artes do Porto, que Vasco Cunha colaborou no desenho do “Pavilhão de Ténis”, mais tarde reconhecido por Fernando Távora, como uma das suas obras mais emblemáticas. Quando o Professor fechou a sua “escola”, Vasco Cunha foi estagiar com Arménio Losa, Cassiano Barbosa e Octávio Lixa Filgueiras. Foi com a planilha destes Mestres que regressou a Coimbra, onde executou, em quatro décadas, cerca de 900 planos e projetos com a sua própria linguagem de arquitetura. Um desses trabalhos foi o da minha primeira habitação! Um edifício maioritariamente revestido com alvenaria de tijolo face-à-vista, com muitos pormenores ainda hoje inimitáveis e um mobiliário de design ímpar, intemporal, do qual ainda guardo algumas peças.
Apesar de não ser um entendido na matéria, reconheço-lhe a notável arte em explorar os 5 pontos corbusianos da arquitetura, onde sobressai a ideia do “terraço jardim”, no rompimento com a arquitetura local e a tentativa de recuperar o solo ocupado pelo betão, transferindo-o para os andares superiores. O edifício gaveto que une as Ruas General Humberto Delgado e a dos Combatentes de Grande Guerra, é um desses exemplos. Não fosse a pressão dos promotores e, digo eu, ao invés das galerias sob a grelha de pilares do piso térreo, teríamos a encosta do Penedo da Saudade a entrar pelos pilotis de Corbusier e a sair nas artérias, num conceito de “cidade verde”, a valorizar o espaço entre as árvores como ensaiou mais tarde no Atrium Solum, com os pilotis a transporem o jardim para o piso superior e a ligaram o objeto arquitetónico ao solo de uso pedonal.
Em Coimbra é difícil evitar-se a sua obra: a da década de 80, sob a influência pós-moderna, a que se seguiu com a introdução da tecnologia e a quase sempre presente escola do Porto, da minha preferência, que expõe o tijolo, o betão, o ferro, a pedra e a madeira.
Para compreender as palavras que António Monteiro dedicou ao seu colega, Vasco Cunha (“exemplo de cidadão onde a honestidade, o bom senso e a solidariedade são uma “Marca” de vida”), é preciso “entrarmos” no Salão Nobre do Município, onde o NARC e a CMC homenagearam o Arquiteto que viveu para a cidade. O que escrevi até aqui é apenas introdução ao homem que, no meio da solenidade, a fazer-nos recordar Charles Dickens (“as coisas mais bonitas do mundo são as sombras”), trocou afetos e lágrimas com Adelina Maria Areosa de Almeida Carvalho (a quem eu carinhosamente apelido de “Simone de Oliveira”), na presença dos seus filhos, netos, familiares e amigos, enquanto cristalinamente recordava estórias de quando discutia a execução dos pormenores de obra. Num dos casos, com um metalúrgico, a quem tinha oferecido o projeto de habitação e a garantia do empréstimo para aquisição do imóvel. Entretanto, problemas de saúde deixaram a família entregue a ninguém, até ao dia em que mãe e filho vieram bater à sua porta. Não pediram dinheiro, só sustento, educação e formação para o jovem descendente do moldador de ferro. Este rapaz fez-se homem, vive em Angola e, assim que soube da homenagem, fez-se à estrada. Ainda sem dormir, ouviu da boca emocionada do Arquiteto o que um filho gostaria de ouvir de um pai. Por fim, o rapaz, hoje homem, em sinal de reconhecimento, levantou-se do meio dos convidados e cumprimentou o mestre. Estava feito o tributo que um Homem merece ter em vida. O resto está nos manuais da faculdade, nas teses, nos arquivos, nas memórias, no espaço da cidade e na emoção partilhada pela família. Bem-haja, Arq. Vasco Jorge Antunes da Cunha.

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