“A fome é má conselheira” diziam os antigos. Talvez, por isso, antes de tudo convém aconchegar o estômago e dar algum sustento ao corpo e à mente. E porque “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão” a alimentação acompanha-nos em todos os momentos da nossa vida, ainda que “a casamento e batizados só vais se fores convidado”. Impõe-se a fartura na mesa quando nascemos, quando crescemos e vencemos as duras etapas da vida, quando casamos, quando morremos. Se hoje, somos polidos na hora do enterramento e discretamente passamos no momento de dor, antigamente era momento onde o alimento não faltava para satisfazer familiares e amigos do defunto. Era a canja, ou o caldo das couves, o galo assado, o pão sempre o pão para acompanhar o que era posto sobre a mesa, o vinho e algum pão-de-ló ou algum pão doce que alguém levava à família enlutada. De tal forma era assim que quando as cerimónias fúnebres se atrasavam se dizia à boca cheia com alguma impaciência “nem o pai morre, nem a gente almoça!” que isto de “viver de barriga vazia, não tem alegria!” e para tristeza já basta a morte!
Mas da fome à fartura, da barriga vazia ao ventre farto, vai uma distância grande, essa foi uma caminhada que a humanidade demorou a fazer e, na verdade, quando pensamos a sério sobre onde fomos buscar o gosto que, dizemos, nos paira na boca e que achamos que é só nosso sem pensar como o partilhamos com os outros, se calhar fomos descobri-lo na fome que nos guiou até ao alimento transformado na cozinha. Pois, “quando há fome, não há pão mal feito” e “a fome é boa cozinheira” e “a fome é o melhor tempero” e “tudo sabe melhor quando se tem fome”. Para além das experiências gastronómicas de eleição onde o prazer do palato decorre do momento sublime, os sabores que ainda recordamos como se os tivéssemos na boca naquele preciso momento, são aqueles que nos saciaram a fome numa qualquer situação. Por isso, os antigos tudo aproveitavam e até plantas como as urtigas ajudavam a dar consistência ao caldo. Pena que tenhamos perdido esse apetite pela diversidade, pois hoje insistimos na monotonia alimentar e controlamos a natureza numa produção intensiva de apenas algumas espécies. Insistimos em meia dúzia de legumes, de frutas, de peixes, de leguminosas, etc, sem nos lembrarmos do muito que poderíamos explorar. Depois, muito surpreendidos com as novidades ficamos surpreendidos com os ditos super-alimentos e insistimos de forma abusiva nesses produtos que fazem muito mais sentido na dieta dos povos que habitualmente os consomem do que na nossa. Falta descobrir que a nossa dieta também tem muitos super-alimentos. Basta perceber o que comiam os antigos e como procuravam na sazonalidade a diversidade necessária!
Graças a Deus “não há fome que não dê em fartura” de tal forma que “a ventre farto até o mel amarga”. Soube o homem transformar a ausência em abundância, dar cor à mesa vazia, dar sabor à panela onde a água aconchegou o que se ia encontrando na horta e o que restava na salgadeira. Mesa pobre, rica ou aconchegada nunca deixou de matar a fome aos que nela se sentavam para a partilha. Poderia ser uma difícil operação de divisão onde o sortudo era o que ficava com a cabeça da sardinha, mas dali não saía ninguém com fome. Talvez, a mãe. Talvez aquela que se esforçava por nada faltar aos seus filhos fosse a que sentisse mais fome, fome para dar de comer aos que lhe compunham o coração. Era assim, É assim o coração das mães. Pensemos, se não fosse assim, com tão pouco que havia na horta, na despensa e na salgadeira como poderíamos ter tão bons petiscos? Só mesmo alguém com muita fome de amor para dar poderia fazer receitas tão boas com o pouco que tinha à disposição. De tal forma que, às vezes, até apetecia “ter mais olhos que barriga” e sentir no prato todo o amor de quem nos deu à luz ou nos deu “a criação e educação” pois “lágrimas com pão ligeiras são”.