Opinião: Cindazunda: a princesa, a rotunda e as obras de nada

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Norberto Pires

Confesso que as obras de fachada me irritam, nomeadamente aquelas que são promovidas pelo poder local. As autarquias são muito importantes para o país, pois representam uma forma de poder mais próxima das pessoas e que trata de muitos dos assuntos que preocupam as comunidades locais.
É, nessa perspetiva, uma forma de poder muito interessante que deveria merecer de todos maior participação e interesse na fiscalização dos eleitos locais, mas principalmente na forma como os vários orçamentos são definidos e gastos.
No entanto, e depois de um período em que as autarquias promoveram, muitas vezes sem a necessária coordenação regional e intermunicipal, a construção de vários equipamentos que eram necessários para melhorar a vida das populações, temos assistido, há vários anos, à incapacidade de planear a vida dos concelhos, promovendo os necessários investimentos para que melhore a vida das famílias, os serviços de que precisam e a atividade económica fonte de emprego e prosperidade. Proliferam pelo país obras desnecessárias, construídas para dar nas vistas e justificar mandatos vazios que, na verdade, não tinham nada a dar ao respetivo concelho.
Vem tudo isto a propósito da famosa Rotunda do Arnado em Coimbra que, por decisão da Câmara de Coimbra, passou a ter um relvado, água, luzes e uma estátua em homenagem à Princesa Cindazunda e, pasme-se, à mulher de Coimbra. Coimbra tem uma história riquíssima. Foi, numa primeira fase, denominada “Emínio” (Aeminium) pelos Romanos. Cresceu em dimensão e importância e substituiu a cidade romana de Conímbriga.
Durante a ocupação moura chegou a chamar-se Kulūmriyya e era um importante entreposto comercial entre o norte (cristão) e o sul (mouro). Depois foi fundamental na história da nossa nacionalidade (vários reis nasceram em Coimbra), tendo mesmo Afonso Henriques feito dela a capital do condado, substituindo Guimarães ( 1129 ).
Tudo isto aliado à sua universidade (uma das mais antigas da Europa e do Mundo), ao seu papel na história contemporânea do país, etc., constitui um passado riquíssimo que é património desta cidade. Muitas dezenas de homens e mulheres, nas várias áreas da atividade humana, foram protagonistas desse passado glorioso e verdadeiramente representativo. Homenagear essa história poderia ser feito com uma dessas figuras, nomeadamente femininas.
Mas, como todas as mensagens têm um significado, o que fez a princesa Cindazunda de tão relevante para Coimbra? Na verdade, nada. Era (somente) muito bonita, segundo a lenda, e foi utilizada pelo seu pai, o rei suevo Hermenerico, para acalmar o rei dos alanos, Ataces, depois de este o ter vencido na guerra por Conímbriga perseguindo-o mesmo quando este se retirou para o norte.
Ataces encantou-se pela bela princesa e casou com ela, fazendo as pazes com o pai Hermenerico. Penso que não é uma ideia muito feliz para homenagear a mulher de Coimbra, pois, para além de muito bonita, a mulher de Coimbra é uma mulher determinada, lutadora, apaixonada e com fortes capacidades de liderança. Faria sentido destacar um perfil, correndo todos os riscos, de uma figura de Coimbra que se tivesse destacado na cultura, na ciência, na cidadania, na economia, etc., pela coragem, pelo arrojo, pela… vontade de mudar!
E quanto custou esta rotunda? Se juntar tudo, isto é, arranjo da rotunda ( 470 mil euros), iluminação cénica ( 16 mil euros), custos vários com semáforos, pequenos arranjos, etc., e eventuais custos da estátua da Princesa Cindazunda e respetivo transporte e instalação, o custo final deve ultrapassar largamente os 500 mil euros.
Compare isso com o que a câmara gastou em serviços complementares de educação, com a atividade cultural, com o apoio social às famílias, etc. Faça as devidas proporções. Compare também com o que a Câmara Municipal gastou com o Programa de “Fomento Act. Socioeconómica e Local. Empresarial”. É ridículo, num concelho sem indústria e que não consegue atrair atividade económica. Mas, de repente, meio milhão para uma rotunda. Não percebo o que se passa com a gestão autárquica neste país. Sem ideias, sem projetos, com quase nenhum planeamento, sem ponderar o futuro, muitas câmaras gastam em construção aquilo que devia ser gasto em educação, formação e cultura: há construção a mais e qualificação e cultura a menos.
As rotundas relvadas e com obras de arte são só a última moda de autarcas sem visão e que não planeiam o futuro. São obras de fachada, sem capacidade de dinamizar o futuro, sem capacidade de mudar a sina de um determinado espaço urbano. As pessoas não interessam, mas tão somente o show-off.

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