Opinião: À Mesa com Portugal

Posted by
Spread the love

Olga Cavaleiro

Há dias felizes na vida de cada um de nós, há dias felizes na vida de todos nós como quando uma qualquer cozinheira na alquimia da sua cozinha toca com as suas mãos a alma de uma receita. Não sabemos se tal acontece por acaso ou se resulta da observação atenta que a cozinheira faz na sua tarefa diária de alimentar uma família, uma comunidade.

Queremos acreditar que é por acaso, pois o idílico é sempre mais poético. Não sabemos se é assim. Mas quando procuramos a origem das receitas, preferimos sempre as explicações do acaso, da magia que invadiu a cozinha e transformou a junção dos ingredientes em algo de extraordinário.

É tanto assim que, às vezes, até nos esquecemos que a primeira função da gastronomia foi matar a fome. Tendemos a ver a alimentação como a poesia que salta das mãos da cozinheira entre palavras de embalo, de ternura e de amor. Esquecemos que a dura provação da fome em tempos em que os produtos sobreviviam aos assaltos da natureza entre picos de abundância e de carestia obrigava a uma gestão razoável de ementas feitas com o que havia disponível.

Falamos dos animais que se matavam somente em final de vida como a cabra e a ovelha ou das crias sacrificadas em dias de festa. A forma como seriam cozinhados teria necessariamente de ser diferente, já que uma seria carne velha, dura, a necessitar de ser amaciada para poder ser comida sem esforço e a outra seria carne tenra, quase ainda a saber a leite.

É interessante perceber como a pele dos primeiros é ignorada e como a pele dos segundos é valorizada. Tanto que, em alguns locais da Beira Baixa (Oleiros, Castelo Branco), temos até o cabrito estonado, receita em que o cabrito, após ser abatido, é mergulhado em água a ferver para que a pelo possa ser retirado com maior facilidade. Depois é assado sendo que o resultado é brilhante, pois a pele fica estaladiça a lembrar o leitão.

Magia da cozinha? Seguramente, um olhar mais atento de uma qualquer cozinheira com perspicácia e vontade de dar o melhor de si aos outros num dia de festa em que era aceitável sacrificar um animal de tão tenra idade subtraindo essa perda a um rol de vantagens com a sua prestação até à idade adulta.

Num tempo em que os produtos não abundavam foi a fome a guia para tantas e tão boas receitas. E quando falamos de fome, não falamos apenas daquela pela qual se morria, falamos também daquela que era guia em tempo de sacrificar alguma da abundância, era a fome pela abundância.

Hoje, fala-se em celebrar à mesa momentos festivos com abundância. Outrora, queria-se expor na mesa a abundância numa clara manifestação de gratidão pela dádiva do alimento. Por isso, a cozinheira expressava nas suas receitas essa mesma abundância e as múltiplas expressões de um só produto.

Por isso, antes do início do ciclo agrícola, que o Cristianismo fez coincidir com o início da Quaresma, comia-se o porco em toda a sua multiplicidade alimentar. Era o cozido com a riqueza e diversidade das carnes do fumeiro, os muitos buchos acompanhados de ricas carnes da salgadeira, eram os rojões que faziam a despedida do ano velho e marcavam a gratidão pelo muito recebido.

Há dias felizes na vida de cada um de nós. Há dias felizes na vida de todos nós. A fome foi o início, o amor da cozinheira causa e consequência do imenso sabor que se partilha numa qualquer mesa de Portugal.

Era o porco, centro da economia familiar, que alimentava a família por um ano com a carne conservada na salgadeira, no fumeiro, na banha depois de cozinhada.

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.