E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!…
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!…
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
[…]
Este poema de Alberto Caeiro, o XXXVI de “O Guardador de Rebanhos”, que saiu no “Exame final nacional do ensino secundário”, na prova escrita de Português do 12.º ano de escolaridade ( 639/1ª fase), é uma reflexão sobre o poeta “artista” cujas palavras não brotam da espontaneidade e da união que deveria ter com a natureza, mas do seu trabalho na seleção de palavras, de combinações, de sonoridades, o tratamento e construção de versos. Para Caeiro, o fruto do poeta é, antes de tudo, o inato fluído da Natureza e não neutralizar ou manter os afetos à distância, numa fuga às emoções sob um trabalho de intelectualização, como aliás está bem patente no verso: “Que triste não saber florir!”.
Pelo percurso metafórico que incorpora, é curioso o poema ficar associado a uma grande aldrabice. Suspeita-se que uma “artista”, explicadora, soube (outra vez) o que sairia no exame nacional e deu umas “dicas” aos seus clientes. Um deles replicou essa informação privilegiada a um colega e, num ápice, os contornos do episódio espalharam-se pela internet. Talvez iniciado com um “por favor, não contes a ninguém”, termina com: “Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo e só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive. E pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória…” (excerto da gravação que circulou uns dias antes da citada prova).
Se todos os anos surgem estórias do género, qual a importância desta? Admitindo uma tremenda coincidência acertar em “Alberto Caeiro” e num conto “do século XX”, já não passa por fruto do acaso relevar a “importância da memória” para a expressão escrita (composição). A probabilidade de tal coincidência é, digo eu, a mesma que acertar na chave do Euromilhões dez vezes seguidas. Se houver dúvidas, leia-se o exame: “…defenda uma perspetiva pessoal sobre o modo como o passado é percecionado através da memória…”.
Entretanto, adormecidos pelo desaparecimento de aeronaves fantasma e outros faits divers, contam-se pelos dedos de uma mão os que alertam para o assunto, mas o que é dito nem sempre abona a favor da Educação. As declarações da presidente da Associação de Professores de Português, que li em duas peças, a serem fidedignas, são disso exemplo: na primeira mostra-se bastante chocada com os acontecimentos; na segunda, diz que “A situação está a ser empolgada”. Será mesmo assim? Sem sabermos do resto, escarrapacharam quase ¾ da prova, inclusive o tema da composição que não está nas metas nem no programa, e o que tem a dizer é que estão a empolgar a situação?
Agora estamos neste impasse. Se a prova for anulada, prejudicam-se todos os alunos a quem correu bem o exame. Se não for, ficam a ganhar os alunos que tiveram acesso à informação privilegiada. Qualquer destas será sempre uma má solução! Espera-se, no entanto, que a ocasião seja única para determinar o responsável pela fuga de informação, o responsabilizar e o irradiar do sistema. Pelo que conheço do Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Avaliação Educativa, estou em crer que já terá contribuído para este fim e para retirar do IAVE o(s) parceiro(s) que – como se não bastasse o proveito próprio – descredibiliza(m) o nosso sistema de avaliação, não respeitando o sigilo e a igualdade para todos os alunos sujeitos aos instrumentos de avaliação externa de conhecimentos e capacidades.
“Que triste não saber florir!”.
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