Imagine que alguém lhe propõe que os seus dados privados e confidenciais passem a ser conhecidos por outras pessoas. Calculo que não fique propriamente radiante com a ideia… e que, no mínimo, pretenda saber mais sobre esta pretensão tão intrusiva e adversa. Os dados a partilhar com outrem serão “apenas” os referentes às suas transmissões telefónicas, de Internet, destino e duração, chamadas e sms, os que permitam aferir a sua localização e a dos seus interlocutores, bem como a respetiva identidade, reconhecer o equipamento de telecomunicações usados, mas também a sua informação bancária, a informação fiscal, e vários outros detalhes que podem ser extraídos a partir dos seus dados. Em linguagem banal, são dados sobre dados.
Ou ainda, numa terminologia mais tensa, os metadados.
A discussão gerada desde há dois anos nos foros político e judicial tem sido clarificadora, embora infrutífera. A proposta da direita, que contou em certa medida com a anuência do partido hoje no governo, colocou a tónica da permissão legal do acesso aos metadados de comunicações dos cidadãos pelos oficiais de informações do SIS (Serviço de Informações de Segurança) e do SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa) sustentando que isso é essencial para o combate às ameaças à segurança nacional e como prevenção do terrorismo. O Parlamento aprovou assim esse novo poder aos espiões, tendo, contudo, a norma sido chumbada pelo Tribunal Constitucional, em agosto de 2015, que invocou o preceito da inviolabilidade da correspondência e das comunicações. Mas quer isto dizer que ficaremos desprotegidos caso os espiões não possam aceder aos nossos dados? Julgo que a discussão deve seguir outro trilho.
Antes de mais, o artigo 34.º da Constituição determina que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação”. Todavia, a lei concede já este acesso aos tribunais e à polícia judiciária no âmbito de processos criminais. Ou seja, o acesso aos dados já é possível nos casos em que a lei o determina. Então que razão há para se permitir a devassa aos cidadãos e legalizar a afronta aos seus direitos? Alega-se que outros países já o fazem e que em Portugal há um exagerado protecionismo aos indivíduos. Mas não será esse um bom indicador da nossa vitalidade democrática e do cumprimento do Estado de Direito?
Por outro lado, alegam ainda os partidários da extensão de poder aos espiões que estes só agirão mediante a autorização prévia e obrigatória de uma Comissão de Controlo Prévio. Este argumento levanta pelo menos duas fundadas suspeitas. Por um lado, ainda que previamente autorizadas por uma comissão ou conselho fiscalizador constituído por parlamentares, como tem vindo a ser defendido, convém não esquecer que a maioria dos deputados não jurou exclusividade à causa pública, acumulando-a com outros interesses privados, tais como a atividade empresarial, de advocacia, de consultoria ou de gestão de grupos, muitos deles com negócios com o Estado.
O que nos conduz à perscrutação: não estarão a deixar o galinheiro à guarda da raposa? Por outro lado, são conhecidas as más experiências recentes quanto à ingerência de elementos das Secretas na privacidade dos cidadãos, com inconcebíveis abusos cometidos contra jornalistas, obtendo ilegalmente os registos das suas comunicações móveis e por isso limitadores da liberdade de imprensa. Ou o da detenção de um espião português suspeito de vender à Rússia documentos secretos da NATO. Talvez estes casos sejam excecionais, ou talvez não sejam.
O tema dos metadados parece estar de volta à ribalta. Em causa encontram-se valores em potencial conflito: o da segurança e o da privacidade. A discussão devia ser profícua, mas tem sido estéril. Quem a quer trazer de volta acredita que a insistência é como água mole em pedra dura… Resta saber quão dura é a pedra que sustenta os direitos individuais dos cidadãos garantindo uma liberdade plena.