Opinião – Um texto cortado

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Bruno Paixão

 

Estou a escrever este texto para lembrar que a censura existiu. Para muitos, ela ainda existe. Não foi totalmente banida, pois há várias outras formas escarpadas de condicionamento que passaram a vigorar sob a forma de silenciamento a quem não desiste de erguer a sua voz em favor das causas justas. Contudo, para falarmos em censura, teremos de a haver experienciado (o que não é o meu caso) ou estudado o que representou esta forma de encarceramento de liberdades e ideais. Durante o tempo de sujeição ao cativeiro político infligido pela ditadura e aos seus grilhões infetados pela servidão, a lei legitimava a repressão à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão. Os jornalistas publicavam os seus textos decepados. Não podiam escrever frases dúbias ou suscetíveis de uma perniciosa interpretação. Era tudo cortado. Houvesse ou não houvesse razão.
Uma pessoa foi interrogada por escrever sobre a bomba hidráulica apenas porque o inquisidor não percebia patavina de agricultura, e muito menos de irrigação, e viu ali um potencial atentado terrorista. A censura é a coisa mais idiota que já existiu. E é de tal forma idiota que estava disponível para cortar toda a ideia livre.
Todo o conteúdo, fosse texto, fotografia ou até mesmo anúncio, era submetido a censura prévia. Do gabinete do funcionário-cortador, cada papel saía com um de dois carimbos: “Visado”, que a partir de 1972 passou a “Visto”, indicando qual a repartição de censura que prestara serviço; e outro com o resultado, que tanto podia ser “Autorizado”, “Autorizado Parcialmente”, “Demorado” ou “Proibido”. O carimbo “Demorado” era colocado quando o censor precisava de consultar o seu superior. A demora tanto podia ser de horas, semanas ou meses. Quando voltava com dois traços em cruz sobre a prova, por vezes já ninguém se lembrava do assunto, pois deixara de ser notícia. O recurso ao corte era, por isso, um ato que, em última instância, acabava no gabinete das maiores insígnias do Estado.
A única censura possível devia ser a nossa. Ou melhor, a da nossa consciência, onde o bom senso se ocupa da vil tarefa, tanto corretora como impulsionadora, tanto sensível aos prazeres da socialização como instigadoras de farpas ao comodismo e à conivência imprópria. Mas não nos iludamos, há também quem invoque a censura em vão. Há quem se atire a presumíveis censores por ver neles críticos dos excessos de liberdade. É politicamente incorreto dizer “excesso de liberdade”? Talvez. Mas ele existe. Sobretudo quando fere o recato da vida privada contendendo com o âmago da intimidade dos cidadãos. Seja de figuras públicas ou de pessoas comuns. A liberdade, para ser autêntica, tem de ser redundante: deve haver sempre a nossa e também a dos outros. Caso contrário teremos um desequilíbrio, por via do excesso de uma delas. Assim, o direito à reserva da vida privada de uma pessoa não pode ser sacrificado para salvaguarda da liberdade de expressão ou de informação de um escritor, cronista, jornalista, seja quem for…
A vida pessoal e íntima de alguém, quando desprovida de relevância social e criminal, cabe apenas e só a esse alguém divulgá-la ou mantê-la em segredo. Se porventura um jornalista invocar liberdade de informação para mostrar ao mundo o que é íntimo, privado e estritamente pessoal, é como se se sujeitasse a andar por aí a espreitar pelos buracos das fechaduras. Esse, jamais poderá falar em censura. Em nome de todos os que injustamente passaram por ela e foram cortados.

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