Quando eu lá cheguei já se tinha recuperado para as letras da fachada o nome de José Falcão, que o pobre João III, sem ter culpa no cartório, lhe tinha tirado a meio dos anos 30 (os de mil e novecentos). Em boa hora o fizeram – José Falcão havia de gostar de viver aqueles dias de braço de ferro entre o passado e o futuro, em que os corredores do Liceu eram o lugar de acesas discussões e vistosas escaramuças, os miúdos das famílias ricas de Celas em empolgamentos ML nas concorridas RGAs (as vozes cheias de “povo”); os filhos dos remediados à procura de caminho na tão jovem democracia; os miúdos como eu de olhos abertos para o espetáculo do mundo. Tempo corrido, Portugal viria a arrumar-se a meio caminho entre o passado e o futuro, os ML acomodados nos subidos cargos da tradição familiar, os filhos dos remediados entregues a novos remedeios. Tudo gente entre os 50 e os 70 anos, porque a idade quando nasce é para todos. Mas o Zé Falcão permaneceu Zé Falcão, mesmo que já não seja impossível, como o era no “meu” tempo, romper nos corredores, então entupidos de gente; mesmo que na Sala de Professores faltem as caras juvenis dos professores que o défice ou a austeridade deixou de fora da Escola, alguns da própria vida.
Quarenta anos depois daqueles dias turbulentos e bons, as paredes, os tetos, as canalizações e o mais que tenha sofrido com o passar do tempo, e dos passos dos que ali foram passando, precisa de renovação, mesmo que a fachada continue a exibir aquele porte orgulhoso que João Chambers Ramos lhe desenhou, mesmo que o bairro onde mora o velho Liceu conserve o porte elegante que arquitetos como Raul Lino (o mesmo da casa do antigo Governo Civil) ali plantaram, os traços do estirador contrariando a rigidez dos materiais de construção.
Claro que a Educação dos nossos dias pouco terá de paralelo com a que se usava nos tais anos 30, os nossos dias mais preocupados no acerto dos espaços físicos com os horizontes do pensamento. Por isso mesmo, o Zé Falcão precisa de lavar a cara, que é como quem diz montar andaimes, coisa que já esteve prevista, nomeadamente na altura em que se pensou instalar naquele território o Conservatório. Mas outras, de resto legítimas, foram as vontades, e o Zé Falcão regressou ao esquecimento governativo, o corpo exposto à passagem dos invernos e dos verões, os estuques e cimentos em esticões e encolhimentos que lhes abriram fendas de deixar passar humidades e bolores.
Tão longe foi o estrago que agora ou vai ou racha (literalmente). Já correm petições e escritos nos jornais, chamam-se deputados e autarcas, faz-se ouvir a comunidade escolar. Estivesse João Abel Manta entre nós e estaria na rua um cartoon como aqueles das campanhas do MFA – José Falcão à frente dos reivindicantes, e depois o Eça e o Zeca Afonso, o Torga e o Nemésio, o Almada e o Namora, o João de Deus e o Eugénio de Castro, os da minha geração, das anteriores e os de agora, os ressuscitados dos 180 anos da idade do velho Liceu e os dos 80 do edifício da Afonso Henriques. E o Gedeão, que também por lá andou e alguma coisa aprendeu do que disse das cisões de átomos e máscaras gregas, rosas do vento e retortas de alquimista, dos sonhos dos Homens e dos pulos e avanços que são o sangue do mundo – este grande, que se chama Terra, aquele mais pequeno (tão largo, porém) que é a nossa Escola Secundária de José Falcão.
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