Opinião: Cegueira dogmática torna a Justiça infame

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Joaquim Amândio Santos

São, infelizmente, cada vez menos raras, as situações em que as decisões judiciais nos deixam envergonhados, indignados e verdadeiramente fartos de tal capacidade para contrariar a decência e o bom senso civilizacional, por parte de alguns membros de um poder institucional a quem entregamos o direito e o dever de cuidar da justiça.

Mas quando nós achamos que já nada nos pode surpreender, o aparelho judiciário logo se encarrega de nos mostrar que ainda consegue fazer bater mais no fundo o dislate judicial.

Em dezembro último, o Tribunal da Relação de Évora absolveu um “homem” (enquanto cidadão do sexo masculino, recuso-me a tirar as aspas, pois a palavra mais correta seria energúmeno) condenado em junho de 2015, em primeira instância, a dois anos e dois meses, pelo crime de violência doméstica, no Tribunal de Vila Viçosa.

Aliás, já aí, a sentença foi alvo de uma suspensão, porque o arguido se comprometeu a fazer um tratamento para o alcoolismo.
Os desembargadores da Relação de Évora concluíram que atos como agarrar a vítima pelo pescoço não perfazem maus-tratos.
Vale a pena citar trechos do acórdão.

Para o Tribunal, apesar do desconforto e vergonha sentidos por parte da ofendida devido a acusações de infidelidade, “não é, pois, do mero facto de o arguido consumir bebidas alcoólicas, ou de tomar uma ou outra atitude incorreta para com a ofendida (por exemplo, ir “tirar dinheiro” da carteira desta), ou de, numa ocasião, após um insulto da ofendida, ter agarrado o pescoço desta com uma mão (…), que podemos concluir pela existência de um maltrato da vítima, no sentido tipificado no preceito incriminador da violência doméstica”.

Sem eufemismos vernaculares, atentemos:

Pela leitura, depreende-se que não é considerado violência doméstica tentar esganar uma mulher com a mão.

Já seria se tivesse sido um “par de chapadas no focinho, à macho marialva”?!

Ou era necessário que fossem pontapés, uso de um marmeleiro ou de um chicote para que “aprendesse quem usa as calças”?!

Ou só seria mesmo considerada violência doméstica se a coisa tivesse terminado aos tiros e alvo de um direto da CM TV a registar mais um crime passional e outra mulher enviada para o cemitério?

Depois decreta ainda também não ser violência doméstica furtar dinheiro que pertence à esposa.

Desse “gamanço”, assim desculpado, à aceitação social de que a mulher entregue o ordenado ao homem e caminhe sempre um passo atrás, de cabeça baixa e se submeta a todos os caprichos, vai um caminho mais curto do que parece.

Nada me move contra os juízes e continuo com a firme convicção que a esmagadora maioria exerce com parcimónia e ética, sendo ainda muito competentes nas suas decisões.

Agora, exige-se uma reflexão profunda sobre a catadupa de acórdãos e sentenças que demonstram um total desfasamento com essas qualidades e com aquilo que se espera de uma sociedade justa e protetora dos mais frágeis e do respeito integral pela dignidade individual e coletiva. Em Évora, não foi claramente o caso.

Acreditem que cada vez menos sei para onde caminhamos.

Vivemos numa sociedade que prega aos ventos ser a mais evoluída de sempre.

Cada vez o parece menos.

Continuamos retrógrados em muitos dos nossos comportamentos individuais e coletivos.

Abrandamos, paramos e fotografamos acidentes, lavamos roupa suja nas redes sociais, não olhando a meios, damos audiências fenomenais a lixo televisivo sob a forma de programas dedicados a toda a podridão da sociedade e sim, debaixo de uma pomposa capa de cidadania moderna, ainda são muitos os que sonham com o regresso a um mundo onde as mulheres possam ser tratadas como objetos descartáveis e sacos de pancada à mercê dos seus algozes companheiros.

E tudo isto nos devia preocupar e envergonhar. A todos.

 

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