Opinião: Eu só queria ser médica de família…

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Inês Rosendo

Inês Rosendo

Eu só queria ser médica de família mas chego ao local de trabalho e já tenho a secretária cheia de papéis, entre recados de pessoas para telefonar e outras que só queriam dar uma palavrinha.

Respiro fundo. Começo a chamar quem está marcado e não tem culpa de nos terem enchido o dia de tarefas burocráticas. E as consultas são complexas, importantes, interessantes e desafiantes porque a comunicação com pessoas tão diferentes e frequentemente com tantas doenças e problemas obriga-nos a mudar rapidamente de “chip” e forma de pensar e falar, qual ator num palco da vida.

E, de repente, entre o consolo das lágrimas e a motivação para a mudança de estilos de vida, o computador teima em não querer avançar. E ficamos a gerir os lenços de papel e palavras de consolo enquanto resmungamos entre dentes porque a receita do antidepressivo teima em não querer sair.

E, afinal, o sistema está em baixo no país inteiro, segundo conseguimos perceber em telefonemas para os informáticos do nosso Agrupamento de Centros de Saúde.

Quando o tema de conversa já mudou para as novas tecnologias e vamos tentando descobrir onde puseram as receitas em papel que também teimam em não aparecer, conseguimos, finalmente, passar a receita e adiamos os exames para outro dia porque “o sistema está outra vez em baixo”.

E saem as pessoas consoladas de conversa sobre computadores lentos e impressoras obsoletas, consultas feitas à volta de botões que são ligados e desligados insistentemente ‘para-ver-se-alguma-coisa-funciona’, e saem melhores? Quem sabe… talvez porque vêem que não são os únicos a sofrer e ter problemas: o centro de saúde estava caótico hoje!

E voltam no dia seguinte ou várias vezes depois para buscar os exames e as receitas prolongadas, que não podem sair quando não há sistema. E o médico de família, mais uma vez, não vai almoçar e chega tarde para jantar porque fica a passar o que ficou pendente dos outros dias.

E, quando o “hoje” se vai multiplicando, começamos a pensar no que ‘queríamos-ser-quando-fossemos-grandes’, tentamos concentrar-nos nos dias em que conseguimos ajudar uma pessoa numa consulta feita do início ao fim, sem interrupções informáticas ou burocráticas.

Mas há semanas em que é difícil. E, num país cheio de inovação e boas ideias, fazia sentido que a consulta fosse centrada na pessoa e não no computador ou programas que parecem, cada vez mais, mais complexos e menos amigos do médico, doente ou de qualquer pessoa.

Por isso, a Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos está a fazer um levantamento da situação no sentido de identificar os problemas e apresentar soluções a quem de direito. Porque os médicos de família têm direito a ser mais médicos e menos informáticos.

Porque as pessoas têm direito ao seu espaço e não querem perder o protagonismo para as ferramentas informáticas. Porque, assim, não conseguimos fazer nem medicina de proximidade, nem consultas de qualidade nem dar a resposta que tanto nos pedem a fim de libertar os serviços de urgência. É que eu só queria ser médica de família…

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