Opinião – Crise

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Rui Sousa Silva

Rui Sousa Silva

Este ano, pela primeira vez em muito tempo, a média nacional de acesso ao ensino superior, na primeira fase, foi superior nas engenharias à média de medicina. Embora muitas explicações se possam aduzir para este facto, ele é sintomático de um problema.
Numa época em que se pretende centrar os cuidados de saúde em torno do doente, assistimos à degradação global da medicina e da sua pedra angular, a relação médico-doente. No seu seio reside a arte da medicina desde os seus primórdios.
Se a evolução da ciência médica conheceu, e continua a conhecer, assombrosos avanços no que respeita ao diagnóstico, com métodos cada vez mais sofisticados de imagem médica e laboratoriais, tal como ao tratamento, sendo disponibilizadas propostas mais eficazes e menos agressivas, também podemos afirmar que menos de 20% do que os médicos praticam tem evidência científica sólida para o sustentar.
Assistimos, no entanto, a uma crescente “industrialização” da medicina, fruto dos referidos avanços tecnológicos, em partes iguais com o desvio dos cuidados de saúde das mãos dos profissionais de saúde para um número exponencial de novos actores, desde diversos gestores até técnicos especializados em múltiplas áreas.
A pergunta que se pode colocar é: se o doente estabelece uma relação terapêutica com o seu médico, que se funda na confiança mútua, em que medida este último pode responsabilizar-se pelo resultado final?
Se, por exemplo, o tratamento prescrito não chegar ao doente nas condições intencionadas pelo médico, seja porque foi alterado, modulado, trocado, por um qualquer outro interveniente depois (ou antes) da consulta médica, qual o grau de responsabilidade que lhe pode ser atribuído?
E o que dizer das necessidades artificiais de cuidados de saúde alimentadas pela disponibilidade de meios de diagnóstico ou mesmo de tratamentos de utilidade duvidosa, cabendo aqui técnicas e modalidades chamadas não convencionais, algumas em vias de abandono nos países de origem, sem qualquer prova da sua eficácia?
Se a isto juntarmos toda uma série de pressões a que os médicos são sujeitos no seu dia-a-dia, desde as fatalidades informáticas do Serviço Nacional de Saúde até às compulsões dos novos arautos da produtividade, obtemos a explicação da exaustão dos médicos e, ao mesmo tempo, da falta de prestígio de uma profissão que cada vez menos parece depender da vocação.
Será que caminhamos inexoravelmente para um futuro em que o doente é apenas um consumidor, passivo ou pacificado, de cuidados de saúde e o médico apenas mais um técnico que gere e administra exames?

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