Opinião: Em Setembro, de novo

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Rui Bebiano

Rui Bebiano

Chegamos a meio de Setembro e é tão certo quanto a queda das folhas dos plátanos: as praxes universitárias regressam à rua, aos títulos da comunicação social e ao debate público.

Muitas vezes assanhando ânimos em proclamações de recusa ou, mais raramente, de aplauso. Desta vez, porém, isto acontece com um impacto acrescido.

Em parte, devido à posição assumida por Manuel Heitor, ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior, que a transformou em prescrição remetida aos responsáveis dos estabelecimentos do ensino público.

Mas também porque a realidade impõe um novo olhar. É verdade que o tema já cansa, e pessoalmente preferia passar-lhe ao lado, mas o ruído é tal que, como proclamava o refrão da velha canção, “não podemos ignorá-lo”.

E porque não? As razões mais aduzidas para justificar o interesse ligam-no a abusos que não podem ser ignorados ou permitidos, seja em nome de que “tradição” for.

Aliás, embora mais em algumas escolas ou cidades que noutras, as praxes surgem sem alicerce histórico real, são inventadas e reguladas por “comissões” que vivem na sombra, e têm-se afirmado demasiadas vezes como práticas perigosas, na margem da intimidação ou do crime.

Ao mesmo tempo, assentam no exercício da violência física e verbal, supostamente simbólica, sem outro efeito integrador dos novos estudantes que não o da submissão obediente às hierarquias. Deve, no entanto, reconhecer-se que isto se aplica às praxes em si, não ao conjunto de tradições e festividades estudantis, como queimas e outras, das quais se pode ou não gostar, mas que possuem uma dimensão essencialmente festiva.

O debate sobre o tema levanta muitas questões e é impossível esgotá-las aqui. Mas podem referir-se aspetos menos abordados. Recorrendo ao exemplo de Coimbra, refiro a nova realidade que a praxe não contempla e que lhe impõe um impacto mais limitado.

A Universidade possui – os números são de 2014-2015 e estão disponíveis na página da UC – cerca de 22.000 estudantes. Destes, 10.800 são de mestrado e quase 2.600 de doutoramento, o que significa que os alunos teoricamente suscetíveis de participarem nos rituais da praxe ronda os 39% do total.

Não contando com os muitos, uma boa parte deles estrangeiros, mas não só, que recusam essas práticas ou a elas são totalmente alheios, o que pode reduzir a percentagem talvez para 25%.

Como pode o conjunto da comunidade estudantil, assim amplamente renovado, ficar submetido diariamente a coações e a rituais que, para além de violentos, são anacrónicos e nada têm a ver com a nova realidade multinacional e cosmopolita, social e culturalmente distinta e mais dinâmica, que hoje pode ser encontrada nos espaços da vida estudantil?

Quem convive diariamente com os novos setores da academia sabe que o seu entendimento destas práticas é quase unanimemente muito negativo.

Em vez do assumir atitudes irracionalmente “pró” ou “contra”, podem também olhar-se as circunstâncias que envolvem o destaque desproporcionado dessas práticas, para uns quantos alunos, poucos mas muito ativos, quase o centro das suas existências. As razões são múltiplas.

Vão da carência de estruturas identitárias por parte da comunidade estudantil à despolitização do quotidiano, passando pela ausência de uma cultura aberta e crítica ou pela diluição da capacidade individual para uma vida mais estimulante e autónoma.

Já existem, aliás, estudos e inquéritos de caráter científico que comprovam esta realidade. Por isso, é natural que uma alteração das vivências torne inevitável uma redução do impacto das praxes como expressão folclórica, na forma de abuso, da normalização da obediência. Felizmente, cada vez mais alunos têm vindo a percebê-lo.

E se alguma coisa houver a mudar, é a eles, só a eles, que compete atuar. Às autoridades académicas e civis cabe evitar os excessos. O que já não será pouco.

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