Opinião – Os Livros da Cotovia

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Elsa Ligeiro

Elsa Ligeiro

No dia 19 de Agosto faleceu um dos maiores editores portugueses.
André Jorge, editor e proprietário das Edições Cotovia, apresentou-nos autores como René Char, B. Brecht, T.S. Elliot, Garcia Lorca, Paul Celan, e uma enorme lista de génios literários, entre eles os Clássicos, como Homero, traduzido por Frederico Lourenço, Petrónio, em tradução de Delfim Leão; contemporâneos extraordinários, como Alberto Pimenta, Luís Quintais e Paulo José Miranda, sem esquecer a maravilhosa coleção de Literatura Brasileira, dirigida por Abel Barros Baptista, sempre em edições belíssimas (trabalho iniciado por João Botelho) que perduram na memória e na estante dos amantes de Literatura.
Deu-nos ainda uma revista literária As Escadas Não Têm Degraus, de uma qualidade assombrosa, da qual guardo todos os números como um tesouro.
Esta crónica devia conter (apenas) todos os títulos dos livros que André Jorge editou entre 1988 e 2016 nas Edições Cotovia. Seria a crónica justa à memória de um homem que marcou Portugal nas últimas três décadas como mediador qualificado entre autores e leitores.
A honra de o conhecer pessoalmente aconteceu há 20 anos, quando, em Coimbra, ainda era possível jantar na Praça da República, no Mandarim (que entretanto passou a espaço de fritos da MacDonalds e agora é um bar, cujo nome não quero recordar), no mês de Abril de 1996, em plena Feira do Livro, no ano em que, enquanto responsável pela editora A Mar Arte, representei também a Cotovia e a Assírio & Alvim, e cujo programa cultural foi, sem falsa modéstia, o de maior qualidade alguma vez realizado numa Feira do Livro em Coimbra.
Lembro (de memória) Eunice Munoz a dar voz a poetas da Antologia do Século de Oro espanhol, a presença do poeta António Gancho, que saiu do hospício onde vivia para ler os seus poemas, numa sessão na Casa das Caldeiras; uma Leitura que António Gancho teve que partilhar com a trovoada que apareceu de relâmpago para construir o cenário de um momento único (há um belíssimo texto de Cidália Fachada sobre o acontecimento); e estiveram também no programa do evento António Guerreiro e alguns outros.
Nesse jantar com o André Jorge, em que participaram também alguns autores da A Mar Arte, falámos muito da relação entre editores e autores, de livros, e de algumas memórias de Coimbra que André Jorge – já então um melancólico homem de esquerda – transportava consigo.
Mais tarde, a Editora A Mar Arte, juntamente com a Cotovia e a Assírio & Alvim, apresentaram um projeto à Universidade de Coimbra para a abertura de uma Livraria no TAGV, projeto que a vetusta Universidade desses anos foi sempre adiando, até se perder no tempo a oportunidade de ligar Coimbra ao projeto de Livrarias de Teatro que nasceu no Teatro D. Maria II, em Lisboa.
Guardo também na memória alguns desabafos pessoais de André Jorge nessa noite, ao balcão do Mandarim, num tempo em que os livros ainda tinham uma energia de festa e encontro.
Hoje, os livros, como aliás o foram sempre ao longo da história, são elementos ameaçadores e marginais, obstinados na defesa do pensamento e da memória, contra a rede de entretenimento e alienação contínua que o mundo nos oferece, sabe-se lá com que intuitos.
Talvez para esconder o inefável medo do mundo que mulheres e homens transportam desde o nascimento, e que o André Jorge, através da edição de Poesia e Teatro, na sua Cotovia, não se cansava de combater.

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