Opinião – O peso da culpa

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Joaquim Amândio Santos

Joaquim Amândio Santos

À distância, soube que, em Penafiel, a minha querida terra natal, o inquérito à morte de uma jovem, vítima de um cancro, numa história cruel que parece configurar uma total displicência ou incapacidade de atuação, num dos estabelecimentos centrais do Serviço Nacional de Saúde, leva já longo ano e meio sem qualquer conclusão.

Ao que parece, aguarda um parecer do Instituto de Medicina Legal que, promete agora, vai reunir lá para os idos de julho, se der, se ninguém tiver outra coisa importante para fazer e se a burocracia assim o permitir!

Mas, sem paninhos quentes, toda esta patética atuação da máquina do Estado não apaga o que realmente dói.
Após anos de sofrimento e correria para o hospital, a Sara morreu.

A autópsia, pedida pelo Ministério Público, veio a revelar que Sara, a jovem estudante, morreu de um tumor cerebral. Possivelmente devido à evolução da doença, o seu cérebro pesaria 1,670 quilos, muito acima do peso normal.
Entre fevereiro de 2010 e janeiro de 2013, foram contabilizadas 11 visitas à urgência do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, em Penafiel. O motivo era comum.

Fortes dores de cabeça, desmaios, perdas de equilíbrio e vómitos. Um dos médicos examinou Sara pelo menos três vezes e em todas elas, a que se adicionam as vezes que outros colegas a “trataram”, o diagnóstico foi igual: “estado de ansiedade”. Durante esses longos três anos, foi medicada com analgésicos e ansiolíticos. Cada ida ao hospital resultava numa receita despachada e Sara de volta a casa.

Mas os desmaios teimaram em não desaparecer. A maior parte na escola. E um ou outro desmaio em casa e, daquela vez, o desfecho foi mortal.

Por mais que custe acreditar, nunca, nem no centro de saúde nem no hospital, mandaram Sara fazer uma TAC ou uma ressonância magnética.

Negligência profissional? Falta de meios de diagnóstico? Cortes orçamentais e consequentes ordens superiores para pouparem exames complementares comprovadamente custosos?

Digo-vos que tenho pelos profissionais de saúde a maior das considerações, admiração e agradecimento. Salvam muitas vidas. Todos os dias.

Trabalham muito. Dia e noite.

Já me salvaram a vida. Duas vezes.

Sou um cidadão privilegiado que tem a sorte de usufruir de excelentes serviços públicos de saúde em Coimbra.
Sou também um cidadão indignado por ver acontecer, amiúde, casos destes, por todo o país e de assistirmos ao cínico desmando das respectivas ordens profissionais, caladas e protetoras, assobiando para o ar, no que são acompanhadas pelas administrações hospitalares e pela tutela. Por outro lado, também não são raras as vezes em que utentes acusam injustamente os profissionais, por desconhecimento ou ganância.

Mas parece que foi preciso o JN voltar a trazer este caso para a ribalta para que os responsáveis se mexessem e agora, vai daí, e já anunciam não um mas três inquéritos (!) que, a seguirem os passos do primeiro, desaparecerão nos confins do tempo e da gaveta.

A culpa tem, em Portugal, uma queda especial para morrer virgem e solteira.
Normalmente, é esquecida nos corredores e gabinetes, mercê das demoras nas investigações, tentando que o tempo apague da memória coletiva o que aconteceu.

A Sara já cá não está.

E a culpa da sua vida ausente anda por aí.

Sem nome nem rosto, mas merecedora de ser um peso insustentável na consciência de quem a tiver.

Um peso dolorosamente maior do que um quilo e seiscentos e setenta gramas.

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