Quarenta e dois anos depois do 25 de Abril somos um país conformado. Isso só por si já seria mau, mas se acrescentarmos que estamos conformados com muito pouco, é ainda pior.
Dos dias, afastando a espuma, tomo as seguintes notas:
Nota 1: No fim-de-semana passado, o Expresso, que está a gerir a questão dos “Panama papers” de forma populista, colocou na sua 1ª página o caso da lista dos 100 nomes que estariam a ser pagos pelo GES, com o título “Lista do saco azul do GES com avenças a políticos”.
A notícia refere políticos e jornalistas, mas o título escolhido pelos jornalistas do Expresso para a 1ª página remove a palavra “jornalistas”. Porque é que isso me incomoda? Por 3 coisas:
1. Não há democracia nem liberdade sem jornalismo de qualidade, sem medo, sério, rigoroso e capaz de afrontar os poderosos;
2. Como todos sabemos, pela nossa história universal, muitas das transformações que marcaram o mundo moderno resultaram da atividade resiliente daqueles que decidiram não alinhar e ser, assim, elementos de transformação;
3. Neste caso particular, no país da fuga permanente de informação, da violação sistemática do segredo de justiça, foi possível manter secreta uma lista de 100 nomes entregue ao Ministério Público. Uma lista que só foi descoberta devido aos “Panama papers”. O populismo e as “pequenas omissões” não são aceitáveis.
O que fica deste caso, nomeadamente das perguntas “Como foi possível manter secreta uma lista de 100 nomes, de políticos e jornalistas, no país da fuga permanente de informação e ao segredo de justiça”? Como é que é possível que ainda hoje seja secreta?
Resposta: Quando interessa, com a ajuda de pequenas e seletivas omissões em todo o lado (na informação, na justiça, na falta de transparência, na atividade política, etc.), com a ajuda de alguns milhões (que depois ninguém reclama – a notícia refere ainda dois milhões de euros encontrados em cofres que ninguém reclama como seus) tudo é possível.
Querem matar a democracia? É assim que se faz, mostrando que tudo se manipula e que, quando interessa, todos são manobráveis para conseguir o que se quer. Nestes casos o jornalismo tem de ser particularmente cuidadoso e transparente.
Nota 2: 9,4% do PIB, isto é, 9,4% de tudo o que produzimos em Portugal, é mais, muito mais, do que gastamos anualmente em Saúde ( 9% do PIB), Educação ( 4% do PIB), etc.
Por que é que este número me importa? 9,4% do PIB é quanto já se gastou com a roubalheira do BES ( 9,5 mil milhões de prejuízos, 4,9 mil milhões do Fundo de Resolução e 2 mil milhões do “bail-in” do final do ano passado).
Mas em Portugal, depois de uma inútil Comissão de Inquérito Parlamentar, ninguém está preso, toda a gente envolvida não se lembra de nada, os governantes envolvidos chutam de uns para os outros, e as faturas dos prejuízos vão sendo aos poucos passadas aos contribuintes. Porquê? Porque está em causa a “estabilidade do sistema financeiro”.
A vida das pessoas não interessa, os seus sonhos e os seus projetos, nada disso tem o mínimo de valor. Naaah! tudo isso são coisas menores perante esse grande objetivo nacional que é a estabilidade do sistema financeiro.
Perante isso, confisca-se o dinheiro dos contribuintes – até se diz que é dinheiro público – e aplica-se em roubalheiras, desprezando as necessidades de uma população que entrega à confiança do Estado o dinheiro dos seus impostos para que essas necessidades sejam satisfeitas.
Entrega mas não exige uma rigorosa prestação de contas de cada cêntimo entregue ao Estado, responsabilizando a gestão que é feita desses recursos.
Na verdade, ninguém reclama. Na verdade, continua tudo na mesma.
Nota 3: Portugal merece o melhor, tem de exigir o máximo, até o impossível, de quem elege para os vários organismos do Estado.
Do Presidente da República de Portugal eu espero um discurso de futuro, com metas, novos desafios, aparentemente inatingíveis, que diga com clareza a todos que temos de fazer muito mais para conseguir transformar este país. Um PR tem de confiar em Portugal, mas estar permanentemente insatisfeito, e procurar motivar a população para a necessidade de mudar, reformar, definir políticas públicas que nos permitam tirar mais partido dos nossos recursos limitados e ser capaz de cumprir aquilo que andamos a prometer há 42 anos.
Não espero que o PR aponte o caminho, mas exijo que defina metas de médio e longo prazo e seja muito rigoroso na verificação do caminho seguido. Qualquer outra coisa, com ou sem afetos, com ou sem palavras bonitas e homenagens tranquilizadoras, são palmadinhas nas costas. E isso, caro Marcelo Rebelo de Sousa, eu dispenso.
Não quero que todos lhe batam palmas, porque muita gente tem de ser instabilizada, mas espero que todos o ouçam justamente pela justeza daquilo que diz e defende. Não quero um presidente unânime, mas uma referência pela qualidade e conteúdo do discurso, pelo exemplo que transporta e pela capacidade que tiver de nos inquietar.
25 de Abril? Não sentem que está tudo um bocadinho conformado? E com muito pouco?