Opinião – A memória que fica dos centenários carris

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Manuel Rocha

Manuel Rocha

Pela janela do meu quarto – ali no Areeiro, entre a Casa Branca e a Portela – há já muito que não passa o ruído do comboio da Lousã. De uma penada, fez agora a 4 de janeiro seis anos completos, suspendeu-se a circulação no Ramal e a tranquilidade na vida de milhares de cidadãos entre Coimbra e Serpins. Houve foguetório e discursata, os autarcas da Lousã e de Miranda abriram os braços à modernidade; o metropolitano, esse, nunca saiu do papel. Dos centenários carris resta a memória de uma utilidade que se manteve inquestionável enquanto houve linhas sobre as traves num traço estruturante desenhado no território, como na antiguidade o foram os rios – as pessoas a fixarem-se ao longo de um caminho de ferro que aproximava os lugares. Mas não. O Metro é que era bom, igualzinho aos que rolam ligeiros por essa Europa fora, mesmo que o traçado de montanha do Ramal não seja nem parente das planas artérias em que rola o ligeiro material; mesmo que a valência de transporte de mercadorias tenha sido, desde sempre, fator de desenvolvimento económico havido e por haver (o transporte de mercadorias viria a ser suspenso em 1992 ). Inspirados talvez nos versos de Pessoa, Carvalho e Ramos sonharam mas a obra não nasceu (pois se a literatura sempre se arredou de ganâncias!). Pelo contrário, o fantasma do Ramal arrasta-se penosamente nos gabinetes de São Bento, perante o silêncio esclarecido de quem promoveu a sua morte e o florescimento do negócio dos autocarros, sorvedores de dinheiro mas também da paciência de utentes todos os dias desconsiderados.
Só as sucessivas empreitadas conseguem circular no traçado do Ramal. Calcula-se terem sido gastos entre 120 e 150 milhões de euros na criação de ruinas: as do trajeto abandonado e as da Baixa de Coimbra. Parece muita maldade? Desenganemo-nos, então: quem arrancou as linhas projeta, agora, retirar aos SMTUC o papel estruturante na mobilidade dos cidadãos, arredando o transporte público municipal de parte dos percursos mais rentáveis, condenando os também centenários SMTUC a uma morte que urge contrariar.
Gritados os protestos – há muito quem se incomode com os protestos, sem cuidar das próprias razões – aqui vão as soluções: é urgente repor os carris do Ramal da Lousã; é vital modernizar e electrificar a linha; é essencial manter a ligação do Ramal à rede ferroviária nacional. Mais: é asseado extinguir a Sociedade Metro Mondego, e justo devolver o património esbulhado ao domínio público ferroviário e ao domínio municipal.
Que não seja pelas saudades, minhas, de “ver” entrar pela janela do quarto o ruído do comboio da Lousã. Que seja para respeitar, com a madeira das traves e o ferro dos carris, os interesses de quem vive – e vai e vem – entre Coimbra e a Lousã. Não vos parece?

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