Opinião – Carta a um médico recém-formado

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Inês Rosendo

Inês Rosendo

Vi-te no sábado, no Juramento de Hipócrates da Secção Regional do Centro, alegre e orgulhoso. Lembro-me que, ainda ontem, entravas na faculdade de olhar tímido, temendo os desafios de uma etapa exigente e te deparaste com livros de centenas de páginas para estudar para cada cadeira, pois ninguém quer formar médicos que não se esforcem.

E tremias para cada exame oral em que avaliavam o que não entendias ou diziam o que não querias ouvir, pois ninguém quer formar médicos fracos. E aproveitavas os intervalos que os seis anos de estudos te iam permitindo para criar laços nas festas académicas e no associativismo estudantil, porque ninguém quer médicos desumanos. Agora juraste que ias ser um médico rigoroso, cumpridor e que irias exigir de ti próprio fazer sempre o bem acima de todos os outros interesses.

Trouxeste a tua sensibilidade, a maneira de ser e os princípios de casa. Na faculdade aprendeste a sobreviver e a conciliar desafios e trazes uma esperança na imagem que tens do que é ser “Médico”. Mas ninguém te preparou, verdadeiramente, para os dias que se seguem e vais ter de trilhar o teu caminho e perceber o teu papel.

Bem vindo ao Portugal pós-crise, em que as omoletes se descobriram poder ser feitas sem ovos e onde o Serviço Nacional de Saúde que te falaram na faculdade está preso por fios que tentamos, em vão, segurar.

Bem vindo aos dias em que ser médico é ser também informático (tens de saber como fazer consultas exigentes e usar 20 programas diferentes que insistem em não funcionar em equipamentos obsoletos), administrativo (tens de perceber as dezenas de papéis que é preciso preencher para se poder internar, operar, medicar, observar doentes e ainda satisfazer os burocratas que nos governam), enfermeiro (quando escasseiam nos hospitais e centros de saúde vais ter de ser tu a fazer), auxiliar (quando não há quem transporte um doente urgente ou higienize o material ou espaço para poderes trabalhar e tratar mais doentes), do cada vez mais papel de advogado (na defesa de um doente bombardeado por interesses em vender “saúde” e sem oportunidade de aceder ao que precisa) e, até, ser padre (o ouvinte conselheiro que tanto procuram em nós).

Isto tudo porque juraste que os doentes não iriam ser prejudicados e percebes que não podem ser. Mesmo que tu ganhes um esgotamento associado à tua medalha de lata de mérito multifacetado.

Ainda assim, escrevo-te esta carta para dizer que tenho esperança e confiança em ti. Espero, sinceramente, que escolhas ficar (apesar de perceber porque será tão tentador sair) e te juntes a nós e possas trazer a tua visão inocente e sangue novo para um país que precisa de força para crescer e se organizar, que precisa de se inspirar nesse sopro que trazes do Juramento de Hipócrates para ter a coragem de saber dizer “basta” e dar, lutar e pôr em prática alternativas ao que te apresentam para não se perder o que o SNS trouxe aos portugueses.

Para seres isto tudo e acima de tudo mais “Médico” e mais humano e para poderes escrever e deixar escapar uma lágrima quando vires os próximos jurarem Hipócrates e que o faças com a mesma alegria e orgulho com que juraste no Sábado.

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