Duas décadas de grandes feitos no “Cantinho dos Reis” (com fotos)

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FOTO DB/LUÍS CARREGÃ

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Há 58 anos que o Zé Reis trabalha no Terreiro da Erva. “Há mais tempo do que muitos que aqui viveram sempre”, graceja. Hoje, o empresário é a “alma” daquele recanto da Baixa e personagem conhecida e apreciada em toda a parte do mundo.

Nascido em Portunhos (Cantanhede), em 1944, quando a Grande Guerra caminhava para o termo, o pequeno José não teve infância fácil. A mãe morreu quando ele tinha apenas dois meses. O pai, emigrante em França, haveria de voltar a casar-se, mas foi uma tia que o amparou. Esta, porém, acabou por viver pouco mais do que sete anos. E foi a avó que o criou, transformando-se na sua figura tutelar até ao fim do serviço militar.

De pequeno, Zé Reis fazia de tudo como faziam de tudo os rapazes pobres e remediados do seu tempo. Ajudava a família nas lides do campo e tomava conta do gado – que, na altura, representava já umas setenta cabeças a seu cargo. Pelo meio, ainda foi à escola e fez exame da 4.ª classe. “Foi a minha madrasta que me obrigou”, conta, num elogio a D. Belmira, que ainda hoje é viva.

Mas o que o Zé queria mesmo era vir para a cidade. Por isso, quando um comerciante da baixa coimbrã apareceu em Portunhos, para comprar vinho ao seu pai, o rapaz não hesitou e implorou para que logo o trouxesse.

Não foi fácil. O pai não queria e houve que meter um tutor ao barulho. Mas nem assim, pelo que o Zé, desenrascado e determinado como sempre, resolveu fugir, escondido entre pipos de vinho numa viagem que lhe ia custando uma valente entaladela. Mesmo assim, logo no dia imediato à sua chegada a Coimbra, o pai haveria de vir visitá-lo para deixar os bons conselhos que se adivinham: trabalha, meu filho; faz-te homem e nunca deixes de ser sério!

FOTO DB/CARLOS JORGE MONTEIRO

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O galego Perez…

À espera do Zé Reis, em Coimbra, estava o dito comerciante. De apelido Perez, era um galego, que, como milhares de galegos, tinha cruzado a fronteira para vir em busca de melhor vida. O comércio que esperava o futuro empregado era, afinal, uma mercearia com vinhos e comidas, numa ponta do Terreiro da Erva – onde hoje existe uma casa de bifanas.

De uma assentada, naquele ano da graça de 1957, o Zé Reis cruza-se com boa parte do destino que lhe haveria de moldar a vida: o Terreiro da Erva, por um lado, e a Espanha, por outro.

Dizer Espanha, aqui, quer dizer Galiza. Ou melhor, as terras deserdadas da raia, encavalitadas nas arribas e vales do parque natural do Xures (o prolongamento galego do Gerês minhoto). No caso do Perez, o concello de origem é Lobios, o mesmo dos seus primos Benito, José (ou Xosé) e Manuel – este dono de uma padaria na velha Alta.

De Lobios, também, era um outro comerciante, de seu nome Eugenio e primo do referido trio, que tinha aberto um estabelecimento de comes e bebes com uma entrada pela Rua da Sofia e outra pelo Terreiro da Erva – ficando este conhecido por Cova Funda.

FOTO DB/CARLOS JORGE MONTEIRO

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… e outros espanhóis

A certa altura, Eugenio negoceia esta casa com Manuel e fica apenas com o Café Madrid (ainda hoje existente, na Rua Direita). E, já estabelecidos, Benito e os irmãos resolvem ir ali ao lado desafiar o Zé Reis para vir servir à mesa e fazer um pouco de tudo (menos na cozinha) na Cova Funda, então pouco mais do que uma taberna assente em chão de terra.

O Zé Reis aceitou o desafio e mudou de casa. Com tudo isto, não chegou a dois anos o tempo em que teve Perez como patrão. Foi o suficiente, no entanto, para que o empresário galego (pres)sentisse a falta, o que o levou, aliás, a cortar relações com os três primos…

Na Cova Funda, o rapaz de Portunhos acomodou-se à casa. O trabalho nunca o atrapalhou. Mas também teve quem olhasse por ele. Teve, por exemplo, um apoio de vulto na cozinheira, D. Maria, que não o deixava sem roupa lavada e passada a ferro.

Estava-se nisto quando Salazar e o salazarismo o chamaram para os caminhos da tropa macaca. No horizonte do mancebo Reis, como no de milhares de compatriotas, estava a guerra colonial. Nada que atemorizasse o soldado Reis, já de recruta feita e bandeira jurada, a caminho de assentar praça no enclave de Cabinda.

FOTO DR

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Tempos de fortuna em Cabinda

Deve ter sido abençoado o embarque, no Cais de Alcântara, nesse 13 de maio de 1966, tal a fortuna que o acompanhou nos três anos de campanha africana. Basta ver que, ainda a caminho de Cabinda, a travessia da floresta de Mayombe- gigantesca mancha verde partilhada entre Angola, a República Democrática do Congo, a República do Congo e a República do Gabão – a coluna de militares lusitanos foi emboscada e o pobre Zé Reis caiu às águas de um rio, afluente do grande Zaire. “Eu não sabia nadar, mas tive a sorte de ver ali um galho onde enfiei a coronha da espingarda para me aguentar e poder vir à tona respirar… e gritar por ajuda”.

Todavia, foi já no aquartelamento de Miconje (lugarejo perdido no interior nordeste do enclave) que lhe veio a sair a taluda. Primeiro, foi chamado ao comando, mandaram-lhe entregar as armas e fardar-se a modos de ir servir na messe de oficiais. Pouco depois, o cozinheiro-chefe teve uma emergência e lá foi o Zé Reis para a cozinha substitui-lo (curiosamente, o substituído é, hoje, um profissional da hotelaria, dono de um restaurante, perto de Lisboa).

Cabe dizer que a mão no tacho, ou melhor, na caçarola e na brasa não surgiu por acaso. Tal como o jeito para o petisco. De resto, ainda na metrópole, em treinos para atirador de Infantaria, já o Zé fazia crescer água na boca aos camaradas de armas.

FOTO DR

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007, licença para a cozinha

Mas, como na vida desta espécie de Gastão de farda e bandeja nunca há duas sem três, eis que, ainda o seu primeiro ano de mato não tinha chegado a meio, é acometido de uma estranha doença que o deixa como que paralisado. Evacuado de urgência para Cabinda, depressa ganha a proteção de um padrinho de tropa, tenente-coronel, que o autoriza a partilhar o tempo de quartel com o serviço num dos melhores restaurantes da cidade, o 007. “Era uma categoria! Toda a gente do golfo lá ia comer e foi lá que eu aprendi a fazer o Bife à Cabinda que ainda hoje sirvo”, conta.

As regalias concedidas não caíram bem em todos. Certo dia, houve mesmo um militar mais invejoso que o abordou, no 007, à procura de autorização. Sem se atrapalhar, o Zé Reis sacou do “salvo-conduto” assinado pelo tenente-coronel e o outro não teve outro remédio senão pedir desculpa. “O engraçado é que esse, que me queria prender, até é de Coimbra e ainda anda por cá”, ri-se.

Os três anos de África foram extraordinários para o soldado-garçon-cozinheiro. “Fui muito feliz em Cabinda”, suspira o Zé, parafraseando Malato. Tanto que, acabado tempo de tropa, Reis preparou-se para se mudar de vez para os trópicos. Mas a família falou mais alto. Ou melhor, falou ao coração e o nosso homem veio a correr abraçar, por uma última vez, a avó, que passara o tempo de enferma a pedir para ver o neto uma última vez. “Eu cheguei e ela morreu logo, logo, depois”…

FOTO DB/LUÍS CARREGÃ

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Regresso ao Terreiro da Erva

Voltou, por isso, a Coimbra, ao Terreiro da Erva e à Cova Funda. Pouco depois de chegar, a D. Maria reformou-se, deixou a cozinha… e lá teve o Zé que ir à procura de mulher para a sua vida. Cauteloso, foi procurar às origens e, em Vale de Água, aldeia vizinha de Portunhos, encontrou Maria do Carmo. “Ela não me resistiu, mas convencer o pai dela é foi o diabo”, admite. Valeu a mãe, hoje viva e lúcida, já para lá dos 90 anos e “a melhor sogra do mundo”.

Aos 26 anos, José e Maria do Carmo casaram-se e não mais se largaram. Não tardou, aliás, que passassem a trabalhar juntos, na Cova Funda. Lá passaram bons e menos bons momentos. Lá assistiram ao progressivo afastamento do “espanhol” sobrevivente à sociedade inicial, dom Benito. Lá conheceram um rapaz tímido e trabalhador, Sérgio Girão, oriundo de Pereira, que viria a namorar e a desposar a filha mais velha e a tornar-se, com o tempo, o “braço-direito” do futuro empresário de sucesso.

Entrados na década de 1990, a vida mudou, o país ganhou embalagem para outros voos empresariais e José Reis decidiu estabelecer-se por conta própria.

Sem fazer alarido, escolheu o local – no Terreiro da Erva, claro -, e contou aos amigos. Alguns disponibilizaram-se para o ajudar. “O senhor Serra, que era gerente no Fonsecas&Burnay, foi o primeiro a oferecer-se para fiador”, lembra. No fim de contas, acabaram por se lhe juntar dois outros amigos: “Foram o senhor Martins, da Marguil, e o dr. Figueiredo, da farmácia”, esclarece. Todos juntos garantiram ao novo negócio um empréstimo de 30 mil contos (150 mil euros).

FOTO DB/LUIS CARREGA

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Um cantinho para o(s) Reis

O restaurante “Cantinho dos Reis” começou por ter de vencer um forte handicap, já que o prédio, escondido num canto do terreiro, vinha de albergar, de forma discreta, tutelada pela Cáritas Diocesana, um grupo de mulheres de rua em regeneração.

Mais tarde, viriam as invejas, as rivalidades mais e menos sadias, as exigências legais que a outros não chegavam. Depois veio a crise e, por fim, a subida vertiginosa do IVA.

A tudo isto a energia indomável de José Reis se opôs. Com assinalável sucesso, como ficou patente logo na abertura do seu “Cantinho”, num luminoso e prometedor dia de outono de 1995 e como continua a ser notório 20 anos depois.

Ao longo destas duas décadas, o Zé Reis manteve-se fiel a um estilo muito próprio de conquistar e cultivar clientes. Vale-se da arte de contar histórias, do à-vontade com que interpela, abraça e envolve num passado comum o estudante e o futrica, o dr. e o doutor, o sacerdote e o ateu, o polícia e o músico, o político e o jornalista e ainda todos os demais que constam da sua imensa e ecléctica rede de contactos que quase sempre faz milagres.

Um pequeno parêntese para detalhar, aqui, a importância dos políticos, tantos e de tão díspares proveniências e cores são os que por ali passam e ficam clientes e amigos. Um olhar atento pelas inúmeras fotografias expostas nas paredes do restaurante dá, aliás, bem conta disso mesmo.

Um outro parêntese para um atalho, talvez dispensável: nunca os afetos de natureza sociológica (a vocação política de esquerda, o Sporting, o machadismo) fizeram desequilibrar o tempero ou a temperança naquela casa.

FOTO DB/LUIS CARREGA

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Por falar em gastronomia

Ah! E porque é que ainda quase não se falou aqui de gastronomia? Pois, certamente porque o “Cantinho dos Reis” não é ainda candidato a uma estrela Michelin…

Apesar de tudo, há muita e boa escolha na carta diariamente actualizada. O bacalhau com grão, por exemplo, é sempre muito bom. Tal como o cozido de sábado. E também os grelhados de porco preto na telha ou a petinga assada. Depois, há as saborosas comidas de tacho, como a mão de vitela com grão, o pote galego ou o arroz de cabidela. E ainda o bom pão com que, não raro, presenteia os clientes, e o vinho da casa com que, às vezes, surpreende.

Desde sempre, o “Cantinho dos Reis” foi espaço de culto para animados jantares de grupos, sobretudo estudantis mas também de outros agrupamentos. Nos últimos anos, entretanto, o restaurante enveredou por uma oferta mais focada na gastronomia temática, com semanas dedicadas a sabores tão diferentes como as dedicadas ao chícharo, à lampreia ou aos míscaros, que estão mesmo aí a chegar.

O “Cantinho dos Reis” faz hoje 20 anos. Parabéns, por isso, a todos os que ali trabalham: ao Zé Reis, à Maria do Carmo, às duas filhas e ao genro, Sérgio, e ainda às equipas de sala, com a Catarina em destaque, e da cozinha, com foco no chef Jorge Borges.

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