“Bienal Anozero é uma convocação a Coimbra para viver o seu património”

Spread the love

CAPC 5 LC

A bienal Anozero é uma iniciativa do CAPC em parceria com a Câmara Municipal de Coimbra e a Universidade de Coimbra, “explicada” em entrevista de Carlos Antunes ao DIÁRIO AS BEIRAS. A arte contemporânea a pensar e a intervir na cidade classificada Património da Humanidade pela Unesco.

Bienal Ano Zero, proposta pelo Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) à cidade, para decorrer a partir de 31 de outubro e durante todo o mês de novembro. Que projeto é este?

Com a inscrição de Coimbra como Património da Humanidade, consideramos no Círculo [de Artes Plásticas de Coimbra] que podíamos olhar para esta realidade de duas maneiras: de uma maneira mais ou menos eufórica, considerando que somos Património da Humanidade e que isso nos agrada a todos (ponto final) ou então perceber que, mais do que uma consagração, este é um desafio novo para a cidade. Um desafio que, como qualquer desafio, tem riscos. Pode-se perder ou pode-se ganhar. Eu acho que há muita coisa que se pode perder, se a cidade se auto embevecer com a distinção, ou então assumi-la como um desafio que explicita o património que muitos de nós, de Coimbra, nem sabíamos que tínhamos…

 

… e continuamos sem saber?

Continuamos sem saber. Enfim, eu acho que, apesar de tudo, há um bocadinho mais de consciência. Costumo dar o exemplo eufórico da distinção do Porto como Património da Humanidade, com uma festa que envolveu todos os agentes da cidade, e a reação disfórica da cidade de Coimbra à inscrição. Não se percebeu muito bem, não houve festa, ninguém parecia estar à espera.

 

Mas essa não é a reação da cidade ao que quer que aconteça?

É. Coimbra é uma cidade disfórica, não reage euforicamente a nada. E eu não acho que esse seja um problema se tornarmos essa disforia numa espécie de receção cautelosa. Pode ser a minha visão otimista do mundo, admito que seja. Mas eu acho que se nós soubermos conduzir esta disforia que Coimbra tem, de não se envolver emocionalmente com nada, pode não ser necessariamente mau. Porque a inscrição de Coimbra como Património da Humanidade é acima de tudo um desafio e um desafio identitário. O que é que verdadeiramente nós somos que possa ter merecido esse reconhecimento internacional?

 

É necessário pensar e é necessário assumir esse desafio identitário para Coimbra, mas também para o país?

É necessário pensar sobre a nossa identidade, nossa, cidade e país, sim, claro. A inscrição de Coimbra como Património da Humanidade pode ajudar-nos a refletir mais sobre a identidade, de cidade, e, nesse sentido, a nossa identidade como portugueses e Portugal. Um país cuja relevância histórica merece uma distinção internacional, como esta da Unesco, que, na verdade, é muito uma distinção da língua portuguesa.

Sobretudo da língua portuguesa?

Sobretudo da língua portuguesa, que não é só de Coimbra, que nem sequer é só de Portugal. Que é do mundo.

Foi por essa dimensão do mundo que o reconhecimento da Unesco aconteceu também?

Exatamente. E é também um bocadinho por isso que a cidade, Coimbra, não percebeu bem. Mas, se repararmos, progressivamente, a cidade foi assimilando esta verdade que é hoje a inscrição e isso começa a sentir-se nos fluxos de turismo, no investimento em torno desse reconhecimento e dessa visibilidade. Há a descoberta de uma paixão nova pela cidade, que nós todos tínhamos abandonado um pouco, tínhamos deitado a toalha ao chão. Parece-me que começamos, lentamente, a perceber que afinal há aqui muita matéria que podemos usar a favor da cidade e a favor do país. É a isto que eu chamo reflexão identitária, que deve ser sempre conduzida numa perspetiva de autoquestionamento permanente, construtivo e não num exercício de vaidade e exaltação. E este é um elemento distintivo de Coimbra relativamente a outras inscrições [pela Unesco]. É aqui que eu digo, sem nenhuma espécie de ironia, que esta dimensão disfórica de Coimbra pode ser tornada uma coisa muito boa, porque nos permite estar sempre atentos. Esta constante crítica que nós fazemos uns aos outros em Coimbra, se passar a ser feita em torno de uma coisa que nos capitaliza e nos dá identidade comum, pode tornar-se uma coisa boa. Não vai criar um bairrismo.

Não há bairrismo em Coimbra. É o que marca também, decisivamente, a distinção?

Completamente. Embora nós tenhamos sempre a tentação de copiar o modelo do outro, neste caso, só temos de perceber bem o que somos, o que nos distingue e vivê-lo, não diria com um grande orgulho, mas com uma grande consciência: isto é assim, é bom por ser assim, é distintivo por ser assim e tem vantagens que os outros não têm por ser assim.

E a arte contemporânea nesta leitura necessária?

É fácil de explicar. O Anozero é uma reação da arte contemporânea aos riscos da inscrição [pela Unesco]. A inscrição, como qualquer realidade que envolva património é, tendencialmente, a cristalização de alguma coisa. A forma como habitamos o património ou como reconhecemos o património é tendencialmente cristalizada. O património é aquilo que legamos para o futuro e que não tocamos. Eu acho que esta visão do património é terrivelmente perigosa e é contrária à arte contemporânea. A arte contemporânea é o território do questionamento permanente do estabilizado, do que é dado, do que está adquirido. E, nesse sentido, propor uma bienal de arte contemporânea a propósito do património, pode ser uma coisa muito meritória, se soubermos aproveitá-la.

Parece-lhe que Coimbra saberá aproveitá-la?

Para já, a bienal tem merecido a adesão de todas as entidades com quem temos conversado, que ficam surpreendidas com esta ideia, que é muito simples, mas é desconcertante. É acima de tudo uma convocação à cidade para viver desassombradamente o seu património. Porque o seu património é um lugar de enorme qualidade e, por essa razão, nós somos obrigados a propor programa para ele, o que é tudo o contrário da cristalização. Como é que nós interagimos com este património, como é que curte-circuitamos esta tendência da consagração que o património implica e criamos desafios para aquilo que são as nossa inquietações como cidadãos do século XXI.

Essa genérica interação com o património é o propósito da bienal Anozero?

É esse o propósito. Mas com uma inscrição urbana muito clara. Talvez pela minha tendência natural para pensar a cidade através do olhar do arquiteto, que é o que eu sou, que não deixa de pensar a cidade na sua dimensão urbana e cosmopolita. Urbana, numa primeira instância, e tendencialmente cosmopolita, que eu acho que deve ser a vocação de qualquer cidade, não do ponto de vista da escala, mas do ponto de vista do lugar da produção do conhecimento. Uma metrópole cosmopolita deve distinguir-se por ser um lugar onde se concentra o maior número possível de pessoas que questionam esta coisa que é a nossa relação com o mundo. Esta é a dimensão cosmopolita das cidades. Eu acho que Coimbra pode, à nossa escala, ser isso, e que o Anozero pode contribuir.

 

Pedro Cabrita Reis e Francisco Tropa na bienal

Que entidades estão envolvidas no projeto Anozero?

Este é um projeto que apresentamos à Universidade de Coimbra (UC) e à Câmara Municipal de Coimbra (CMC), que o acolheram com grande entusiasmo. Isto faz-me acreditar que quando todos trabalhamos com a mesma intenção, sem nenhuma espécie de reserva moral – uma coisa muito de Coimbra –, tudo é possível.

Depois, há os artistas. Há, sobretudo, os artistas?

Há sobretudo os artistas e é justo dizer isto, porque não se faz uma bienal com uma dimensão internacional sem a participação ativa dos artistas. Uma bienal internacional não é apenas juntar muitas exposições, há implicações do ponto de vista da produção, da articulação entre os artistas, da articulação curatorial que obrigam a um grande esforço.

Que tem um orçamento?

O orçamento escrito é de 550 mil euros, mas muito deste dinheiro resulta de um apoio não contabilizado da CMC e da UC, de produção, cedências de espaço, pagamento de vigilantes, horas extraordinárias. Isto, não sendo quantificável, representa muito dinheiro. Há dinheiro efetivo da CMC e da UC, da DGArtes e há também uma parte significativa de apoio em géneros de algumas grandes empresas.

Há projetos emblemáticos?

Emblemáticos, pelo que representam de propostas para a cidade. Por exemplo, uma escultura que o Francisco Tropa doa e que é na verdade um edifício, um museu. Com tudo o que tem um museu: curador, diretor, conservador. Três figuras que serão “eleitas” e vão lançar desafios à cidade para que sejam sugeridos objetos a mostrar na estrutura que ficará instalada em Santa Clara, na Praça das Cortes.

Numa interpelação à cidade?

A nós interessa-nos fazer alguma coisa em articulação com a cidade. A pior coisa que podia acontecer é o Anozero ser uma colónia que invade a cidade, com agentes externos que se vão embora no fim da festa. Isso não nos interessa nada. Para ter uma bienal com dimensão internacional, temos de convocar grandes artistas internacionais, mas queremos também convocar produtores locais, a imprensa local, as empresas locais. Há uma rede local que é fundamental ativar.

Essa rede está a ser ativada?

Desde a hotelaria à restauração e ao turismo, tem sido absolutamente surpreendente. Claro que não estou completamente satisfeito, o que também acontece a nível nacional. Mas não podemos exigir que numa primeira edição as pessoas adiram sem nenhuma reserva. Apesar disso, a adesão tem sido extraordinária, dos voluntários aos professores – na ligação aos jovens através do serviço educativo –, passando por algumas empresas.

Há ainda, entre outras, uma intervenção de Pedro Cabrita Reis na Sala da Cidade?

A Sala da Cidade, no Mosteiro de Santa Cruz – denominador comum de toda esta questão sobre a língua portuguesa – foi recuperada há anos e, depois, colonizada e alterada por uma estrutura efémera, que acabou por se manter. O que se pretende com a intervenção de Pedro Cabrita Reis, é devolver a sala à cidade na sua plenitude e na sua escala identitária, fazendo da remoção da estrutura um ato criativo. Nesta ideia de que os processos destrutivos podem afinal ser projetos regeneradores e construtivos.

 

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.