Opinião – A esquerda que cala e a direita que agradece

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Rui Bebiano

Rui Bebiano

Parte significativa do património histórico e identitário da esquerda, ou pelo menos de um segmento importante dela, tem vindo nos últimos tempos a ser esquecida ou abandonada por algumas das organizações políticas e dos movimentos de cidadãos que se consideram herdeiras do seu legado global.

Ao longo de mais de século e meio de vida, e a par da preocupação com a justiça social, muitos dos seus combates mais importantes e difíceis foram de facto travados em favor de uma democracia sem restrições, da mais completa liberdade de expressão e de opinião, dos direitos das mulheres, do respeito pelas minorias, de um ensino, de uma política cultural e de uma civilidade absolutamente laicos e ao dispor de todos.

Muitos desses combates foram, aliás, pontuados pelo sacrifício e a entrega de várias gerações de abnegados militantes ou de simples cidadãos. Erguendo-se, em todos os quadrantes, contra todas as formas de ditadura, de arbítrio e de opressão, contra a censura nos seus diversos rostos, contra a segregação racial e a desigualdade social, contra a ignorância e o obscurantismo, contra o uso das religiões como instrumento de opressão, como «ópio do povo» – assim as definia Marx na conhecida passagem da «Crítica da Filosofia do Direito de Hegel», publicada em 1844 –, e não como expressão de uma legítima espiritualidade.

Todavia, para quem observa o discurso, as escolhas programáticas e as tomadas de posição de alguns desses setores, tais metas políticas parecem estar a ser empurrados para os arquivos do seu próprio passado. Pior, em alguns casos as posições assumidas atestam até uma rutura com essa herança, num processo que, sem qualquer receio de exagero, pode ser considerado de silenciamento, ou mesmo de completa subversão, da sua tradição, da sua matriz ideológica e da sua identidade política e cultural

São vários os sinais que, em nome de um suposto «aggiornamento» e de uma adaptação à uma realidade objetiva, indiciam essa traição. Desde logo respondendo aos limites e à crise da democracia representativa com a sua desvalorização e não com a sua reforma, usando o vínculo a dada altura estabelecido entre muitos partidos socialistas e trabalhistas e a aceitação do modelo neoliberal para os desqualificar, mesmo em momentos críticos, como possíveis aliados, esquecendo de todo a antiga linhagem libertária. Mas também estendendo a defesa de um relativismo político e cultural incontido até à aceitação sem grandes reservas de sociedades marcadas pelo autoritarismo e pela desigualdade.

A própria importância à antiga tradição internacionalista tem vindo a ser preterida, centrando-se o combate neste campo em «inimigos globais», como os Estados Unidos ou Israel, mas deixando de lado a intervenção negativa de Estados autortários e expansionistas como a Rússia ou a China e, em consequência, manifestando um quase alheamento por aquilo que ocorre em espaços críticos, envolvidos em conflitos brutais, como aqueles que acontecem neste momento na Síria, na Ucrânia ou na Nigéria. Salva-se, quanto muito, alguma atenção perante o drama palestiniano e, agora, diante da crise grega. Mas é pouco, é muito pouco.

Esta despromoção de um interesse geral pelas diferentes dimensões da emancipação humana, que esteve tantos anos na linha da frente dos objetivos políticos dessa esquerda, tem tanto de incompreensível quanto de indefensável. Ela precisa ser invertida, sob pena da sua antiga vocação emancipatória poder, por omissão, ser perdida ou deixada nas mãos da direita mais abjetamente populista. Ou, pasme-se, oportunisticamente metamorfoseada, como aconteceu agora com o caso «Charlie Hebdo», em suposta defensora da paz, da liberdade e dos direitos humanos. Se essa inversão não acontecer, ela agradecerá.

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