Opinião – Manuel Alegre: homem que merece a poesia

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JOSE RIBEIRO FERREIRA DR

Passaram 50 anos sobre a publicação de Praça da Canção ( janeiro de 1965 ) de Manuel Alegre. Fez bem a Dom Quixote em lançar nova edição a assinalar a comemoração. Praça da Canção torna a canção uma arma: a canção diz “que há qualquer coisa que se chama vida”, não conta histórias para dormir, está acordada e é “canção acesa / sobre a noite / do mundo” (cf. “Canção de circunstância”).

Recorre à poesia e à musicalidade para dar voz a denúncias diretas e concretas, para testemunhar amarguras da prisão e do exílio que tantos então sofriam e viviam. O livro – como aliás outros posteriores – expressa bem o espírito combativo e rebelde do poeta que nunca cessou de instigar à ação e à revolução todos aqueles que, de algum modo, se sentiam subjugados pela força opressora da ditadura.

Refere Manuel Alegre, em entrevista concedida ao Jornal de Letras de Janeiro de 1994: “A Praça da Canção, escrita em Angola, na cadeia e em Coimbra, e que deixei cá já pronto, quando parti para o exílio, é um livro de resistência, uma poesia de liberdade, uma atitude romântica baseada na convicção do poder da palavra, na convicção de que a palavra podia mudar a realidade e a própria história. Eu falava em dar o poema como quem dá uma arma. E alguns desses poemas foram armas, sobretudo graças às vozes de Zeca Afonso, de Adriano Correia de Oliveira, do Manuel Freire, de Luís Cília”.

A composição de Praça da Canção reflecte os tempos de Coimbra e os da comissão militar em Angola, quer em Nambuangongo, quer na cadeia de S. Paulo, em Luanda. Quando em julho de 1964 se vê forçado a passar à clandestinidade e a exilar-se, deixa-o pronto ao cuidado da mãe que o entrega a Ivo Cortesão. É este que o faz sair na Coleção Cancioneiro Vértice, já com o autor no exílio. Apesar de apreendido pela Polícia Política, é das mais divulgadas e conhecidas obras de Manuel Alegre: distribuído de forma clandestina e copiado secretamente, na totalidade ou em parte, à mão ou pelos meios de reprodução da altura, muitos dos seus poemas passaram de mão em mão e não poucos foram recitados, musicados e cantados. Quem não se recorda ou canta, entre outras, a “Trova do amor lusíada”, a “Trova do vento que passa”, o “Romance de Pedro Soldado”, a “Canção com lágrimas”, “Nambuangongo meu amor”.

O êxito que Praça da Canção advém também do recurso quer à cadência popular do verso em redondilha maior, quer às formas tradicionais do romance, da canção, da trova, da balada. Sentiram a intensa musicalidade dos poemas vários compositores e cantores que eram quase irresistivelmente atraídos a musicar os poemas de Praça da Canção. O seu grande sucesso ligou o livro indissociavelmente à imagem literária de Manuel Alegre. Talvez por isso tenha sido catalogado por alguns autores, de forma equívoca e um tanto apressadamente, como “o poeta da guerra colonial», o poeta neo-realista ou o “poeta da resistência e da revolução”. Mas se nos quedarmos por tais classificações apenas, será apoucá-lo significativamente, porque a sua obra as ultrapassa de forma visível. O próprio poeta, no Jornal de Letras ( novembro de 1995 ), sublinha: “Eu não sou, nem nunca fui um poeta neo-realista”.

Manuel Alegre é personalidade inquieta, insatisfeita, nunca contente com a situação que vive e sempre em constante busca de perfeição e de melhores condições. Não é, pois, de estranhar que a errância inquiridora seja tema da sua obra – errância bem corporizada no mito de Ulisses, central na sua poesia, como já em outras ocasiões mostrei. Desde os primeiros livros, o seu espírito vive também a insatisfação da nossa condição precária, se interroga sobre os grandes enigmas da existência (do homem a Deus, do Universo ao nosso planeta e seu futuro), busca caminhos para o homem, quer como indivíduo, quer como membro da pólis; pensa e reflete sobre a poesia, a melhor forma de a materializar. Ou seja, como refere em “O poeta”, ninguém pode roubar ao poeta o “luar na alma”, porque “aprendeu o preço exacto da canção”, é “um homem a cantar / um homem que sorriu aos tambores nocturnos” dos “cárceres depois cantou / de pé no seu poema”. Ninguém contra ele pode nada, é “um homem que merece a poesia”.P

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