Carta aberta a sua Ex.ª a ministra da Justiça, a propósito da demissão do Professor Catedrático de Medicina Legal da Universidade de Coimbra, Nuno Vieira.
Para que considere.
Aprendi com meus pais o que era lealdade e patriotismo. A minha mãe foi minha professora primária a partir da primeira classe em Cassongue (Angola). Angola foi o único Estado em que vivi a liberdade e responsabilidade plena e a inerente felicidade.
Quando no meu 5.º ano, minha mãe pergunta-me o que queria ser na vida, respondi que queria ser juiz ou advogado. “É um desgosto que me dás; se fores juiz hás-de ter que condenar muito inocente sabendo que o são; se fores advogado, hás-de ter que defender muito patife sabendo que o são. Não te quero com problemas de consciência”. Ela pouco depois faleceu. Decidi-me pela Medicina.
Mas lealdade pressupõe duas coisas: fidelidade e frontalidade. Patriotismo é dar a vida pela pátria; isto é, ter e defender valores.
É assim que, estando a jantar com o colega Fançonie, natural de Lobito, Angola, na pensão Pireza, em Bissau, aproxima-se de mim um colega, radiologista, e diz-me ao ouvido: “Vais ser preso esta noite; o PAIGC detectou um telegrama dando essas instruções; se quiseres fugir para o Senegal estará um táxi junto da estátua Teixeira Pinto, à meia-noite, para te transportar. Eles tratarão da tua família”.
– Nunca trairia a minha pátria!”. Foi a noite mais longa da minha vida!
Muitos anos depois, um político de prestígio local, na Figueira da Foz, quando tomávamos banho no mar, o interpelei sobre este facto: “Nunca se pensou fazer isso, foi só para o assustar!”.
Mas nunca me assustei! Foi baseado nos mesmo princípios que na primeira assembleia geral da Universidade, ocorrida no Teatro Gil Vicente, reflecti, quando vai para a mesa uma moção nos seguintes termos: “Angola para o MPLA; Moçambique para a FRELIMO; Guiné e Cabo Verde para o PAIGC”. Fui o único que votou contra e de pé. Os colegas José de Almeida Rocha e António Pinho Marques, bem me puxaram pelas calças para que não o fizesse; acompanhou-me à saída do Teatro o colega João Pinto Sá. Como estou grato aos três. Mas, pouco antes tinha sido convidado para Governador Civil, cargo que recusei porque seria incapaz de ferir alguém e, sobretudo, algum amigo.
Como presidente da Comissão Central da Queima das Fitas, do meu ano, dirigimo-nos ao Magnífico Reitor e meu professor, Maximino Correia para o cumprimentar e dar-lhe conhecimento.
– “Quem vos disse que o Governo, o Senado e a Reitoria querem que s efaça a Queima das Fitas?”
– “Senhor Reitor, a Queima das Fitas, nem que seja contra a vontade do Governo, do Senado e da Reitoria!”.
Com o gesto de maior cortesia, usado na praxa académica, curvamo-nos e despedimo-nos. Vem a correr atrás de nós, estávamos a transpor a porta dos archeiros e diz: “Parem! Façam a Queima das Fitas, eu estarei convosco, sejam quais forem as consequências; dou-vos já 30 contos pois sei que estais sem dinheiro”.
É que no ano anterior a Queima das Fitas fora suspensa por um mal entendido e proceder, havido quando o Cortejo chegou à Portagem e ocorrido à frente do Banco de Portugal.
Consta do meu currículo o louvor dado pelo Senado e Reitoria nos seguintes termos: “Pela dignidade e compostura com que tinha decorrido a Queima das Fitas”.
Quando foi o encerramento do Jornal A República, eram mais os que eu lá levei do que os do PS.
Senhora Ministra
Por eleição foi presidente do Conselho de Gerência ou de Administração dos HUC durante quatro anos, isto é, director do hospital. Nunca soube qual a ideologia deste conselho ou de quem trabalhava no hospital. Quando fui empossado no salão nobre, até um ramo de flores, isso soube-o recentemente, foi lá colocado por uma enfermeira que trabalhava no meu serviço. Nesse discurso disse em síntese: “O Conselho de gerência a que presido exige lealdade, trabalho e competência. Que serão julgados sempre com compreensão e tolerância. Em trabalho e competência ainda podemos transigir, mas o primeiro que for desleal terá uma guia de marcha para se apresentar no ministério por ter perdido a nossa confiança”.
Bateu-se o record na Europa na mudança num hospital, quando fomos dizer à senhora ministra que era preciso marcar o dia da inauguração, pergunta-nos: “Quando é que começam a mudança?”.
– “Já mudamos há um mês!”. O plano de mudança foi elaborado pelo Professor Carlos Oliveira. Durante esses quatro anos não houve nenhum processo disciplinar. Apenas um auto de averiguações para que ficasse para memória futura que à decisão tomada não tínhamos outra alternativa.
Trouxemos para Coimbra o centro da Medicina portuguesa.
Senhora Ministra
Para presidente do Instituto Superior de Medicina Legal, um juiz, e ele aceitar, compromete as duas partes – vossa ex.ª senhora ministra e ele, sr presidente. Os servidores do Estado deverão ser: mais competentes, justos e impolutos.
O Professor Nuno Vieira tem os três atributos. Quanto ao sr. juiz – justo e impoluto seguramente deverá ser, mas, quanto à competência, duvido. Eu fiz parte do Conselho Médico Legal de Coimbra e quando até nós veio solicitado o parecer sobre a causa do acidente que vitimou o primeiro-ministro Sá Carneiro e Amaro da Costa, baseado nos elementos que nos foram fornecidos, o relatório que nós subscrevemos elaborado pelo professor Henrique Vilaça Ramos, fora de que foi um atentado. O tempo demorou; prescreveu; não se apurou, não se fez justiça!
Veio-me à memória o ocorrido com a gestão hospitalar. Ainda ganhei as eleições, demoraram a empossar, alteram a lei e os directores passam a ser nomeados. Recusei! Não houve nenhum médico do partido que promulgou a lei que aceitasse ser director. Chamados a Lisboa, para darmos parecer sobre a lei, éramos 45, só três a apoiaram e eram de Lisboa. Mandou-se um telegrama ao sr. primeiro-ministro, que nunca chegou às suas mãos – isto foi dito por quem o sonegou, numa reunião das militantes do partido.
Como quem tem o poder é tão vulnerável. Cai sobre Ele a responsabilidade de quem o atraiçoou e atraiçoou-nos! Caiu-se na Época da Subserviência que é a qualidade, pelos vistos, exigida, por quem manda.
Senhora Ministra
Se eu fosse director da Faculdade de Medicina, Reitor da Universidade de Coimbra, director duma qualquer das outras faculdades da Universidade, presidente do Conselho de da Universidade, director do CHUC, membro do Conselho Médico-Legal (não me digam que não existe…), membro do conselho Médico Legal de qualquer um dos outros do país, demitia-me e apelava para que se demitissem.
Considerava uma ofensa à Universidade de Coimbra, que é, uma agressão desnecessária num momento em que a Universidade, a Alta e a Rua da Sofia, foram consideradas Património Material e Imaterial da Humanidade.
É penoso e aviltante aceitar a decisão, para mim, impensável de Vossa Ex.ª. Reconsidere! Só se dignifica e dignifica o cargo e o Governo de que faz parte!
Seja-me perdoado, mas esta carta é um imperativo de consciência! Nunca transigi em questões de princípio. Que seja assim até ao final dos meus dias.
Que fique pelo menos como memória.
Apelo ao Bastonário da Ordem dos Médicos para se não silenciar. É a última oportunidade para Coimbra.
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