O artigo 1.º da Constituição da República (CRP) proclama que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. A lei maior da República, no seu artigo 3.º, declara que “A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição”. Os constituintes consagraram na lei das leis, aprovada em 2 de Abril de 1976, direitos, deveres, liberdades e garantias pessoais e de participação política, a organização económica e política da República.
Apesar de as sucessivas revisões do texto constitucional terem introduzido algumas alterações na letra e no espírito inicial, como é exemplo o plasmar da gratuitidade tendencial do acesso à saúde, “o direito à protecção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”, a Constituição vigora, consagrando princípios, direitos e liberdades por inteiro.
O que incomoda certa gente…Uma Constituição tendencialmente diversa é que lhes iria no goto. Direitos tendencialmente limitados – isso sim!
Uma República tendencialmente soberana, tendencialmente baseada na dignidade das mulheres e dos homens e numa vontade tendencial do povo, empenhada na construção de uma sociedade tendencialmente livre, tendencialmente justa e tendencialmente solidária tem vindo a ser o desígnio das troikas. A actual Constituição é um empecilho, um obstáculo aos que gostariam de reduzir os direitos ao trabalho, e os direitos de quem trabalha, à saúde, à habitação, à educação, à cultura à segurança social entre outros.
Anabela Fino assina na última edição do jornal “Avante!” um texto de opinião com o título “Cacifos”. A jornalista dá-nos conta de que uma associação da capital disponibilizou 12 (doze) cacifos para que os sem-abrigo de Lisboa (mais de 2 mil registados) guardem os seus haveres. Cumprir-se-á assim tendencialmente o direito à habitação consagrado no artigo 65.º da CRP? Não há tecto, mas há um espaço condigno de meia dúzia de palmos de comprimento por meia dúzia de largura e altura para habitáculo de um cobertor ou manta e até, como a imprensa emotivamente reportou, da fotografia da filha de um sem-abrigo premiado com cacifo. Um homem, tendencialmente cidadão de um país tendencialmente soberano, sem dúvida mais feliz. O direito à alimentação cumprir-se-á, embora tendencialmente, com uma sopinha caritativamente oferecida, no fim da fila da cantina social?
Que bom seria – pensarão alguns – se direitos, consagrados na CRP, fossem submetidos a cirúrgica revisão e, por amputação, transfigurados de direitos fundamentais em direitos tendencialmente fundamentais.
Para a troika e para o governo, a soberania, una e indivisível, que reside no povo é, em si mesma, um empecilho. A soberania nacional é um espartilho. Portugal português é um cacifo (mas enquanto o cacifo dos sem-abrigo é o cacifo bom, este é o mau cacifo). A soberania reside cada vez mais nos “mercados”, alcunha que se dá aos grandes bancos internacionais. Uma Constituição só atrapalha…
Sem questionar a generosidade das intenções pessoais, esta moda importada e seguida por todos os ministros do uso na lapela de um “cromo” com a bandeira nacional, parece ser o eco de um grito: somos ou não somos portugueses? Servimos ou não este país soberano?
Parece. Tendencialmente.