Quero contar-vos uma estória que trata de ignorâncias. Não é a ignorância momentânea do capitão Gancho*, nem a dos velhinhos a quem o tempo implacável apagou conhecimentos e experiências, nem a daqueles que não aprenderam e pronto, é a daqueles que sabem que não sabem e agem como se soubessem. Aqueles para quem as consequências futuras não contam, ou estão muito abaixo dos seus interesses e desígnios do presente. Aqueles que aprendem a enganar mas são incapazes de aprender o resto.
Penso que a saúde é dos poucos assuntos em que a ignorância assusta o homem. Quando aqueles que conhecemos, capazes de dizerem as coisas mais incríveis, saídas das bases de dados do seu desconhecimento, se sentem doentes, não dizem nada, reconhecem a sua ignorância e vão diretos ao médico. Acho que se certas matérias fossem doenças, as suas análises seriam bem mais credíveis e valeria então a pena ouvir os seus executores… Mas a estrela desta estória é a Josefa.
A Josefa descobriu que era fácil ter a fotografia no jornal. Escolheu até aquela em meio perfil que o Zeca lhe tirou com o Ipod. Bastava escrever um artigo de opinião! Sim, um artigo sobre um tema, de preferência político para a indignação fazer mais sentido e que já tivesse sido defendido, pelo menos por duas pessoas, para minimizar o risco. Novas roupagens, um insulto mais refinado, algum trabalho com o dicionário de sinónimos e já está. Sorriu e pensou nos seus direitos. Era bom saber-se que eles se mantinham, não obstante as nossas intenções. Foi lavar uma roupita, enquanto, mentalmente elaborava um esquema para a sua próxima obra. Tinha de ser de arromba! Gaita, não me posso distraír para não tingir a roupa toda! Oh Zeca já leste o meu texto? – gritou esganiçada. Ouviu-se a voz do companheiro, algum tempo depois: – Eh pá tens uma porrada de erros nesta porcaria! – Oh filho corrige-os se queres ter uma mulher intelectual! Faz alguma coisa, respondeu indignada.
No quarto ao lado o pai de Josefa, setenta e muitos, lia baixinho para adormecer a neta de três anos:
Conta-me qualquer coisa, avozinho,
Não quero uma canção de embalar,
quero adormecer devagarinho
com uma história d’encantar.
Fala-me de princesas e castelos,
De grandes aventuras e tesouros
Em países longínquos e belos,
Gritos de donzelas, lutas com mouros.
Aquela gritaria da filha fê-lo lembrar-se da Josefa de três anos, a quem ele tantas vezes adormecera com estórias parecidas.
Pensou que já não entendia nada do que se passava à sua volta. Os filhos alteram por completo os valores que receberam dos pais, tudo é dito sem interessar se é verdadeiro ou falso, desde que atinja, já está certo, avançamos numa floresta de incertezas geradas por milhares de opiniões diferentes, opostas, forjadas, sem nexo, tudo vale. Acho que até os analistas já nem acreditam nas próprias análises.
Subitamente, lembrou-se do seu avô pastor de gado que lia os Lusíadas para as suas ovelhas.
* Logo a seguir a terem-lhe implantado o gancho, o Capitão esqueceu-se e foi coçar um olho.