“Há uma tentativa de desmantelamento do ensino superior politécnico”, afirma Rui Antunes

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RUI ANTUNES CJM  (9)

 

“Nos últimos tempos temos assistido a um grande ataque ao ensino politécnico”, considera Rui Antunes, sublinhando que a situação atual indicia uma vontade dos responsáveis de “encerrar cursos e instituições” e não apenas de “reorganizar a oferta formativa”

Foi eleito para o segundo mandato como presidente do Instituto Politécnico de Coimbra (IPC). Na atual conjuntura, particularmente difícil, quais são os principais desafios?

Há vários desafios. Uns são comuns a todo o ensino superior, a nível nacional e internacional, outros são relacionados com a situação em Portugal e com a nossa instituição. Um dos nossos maiores desafios é a sustentabilidade da instituição. A sustentabilidade financeira, mas não só, pois nos últimos tempos temos assistido a um grande ataque ao ensino politécnico. Nos últimos dois anos esse ataque assumiu formas muito evidentes, que nos levam a perspectivar que o ensino politécnico passará por momentos difíceis.

O que o leva a afirmar isso?

Estão a tentar fazer uma reorganização do ensino superior sem nunca se ter discutido o que está mal. Aquilo que se está a fazer, no fundo, é apenas, e só, uma tentativa de desmantelamento do ensino superior politécnico. Há, por exemplo, uma proposta de despacho do secretário de Estado do Ensino Superior que define regiões académicas, que mais não é do que uma divisão dos politécnicos pelas universidades. Se, de facto, se pretende reorganizar o ensino superior, há outras formas mais adequadas de o fazer. Não faz sentido juntar o Politécnico de Coimbra e a Universidade de Coimbra para coordenarem a oferta formativa. A universidade tem um tipo de ensino, nós temos outro tipo de ensino. À partida, os cursos que existem no politécnico não existem na universidade e os que existem na universidade não existem no politécnico.

Essa diferença, aliás, esteve na génese da criação do ensino politécnico?

Se temos um sistema binário, se os cursos, pela legislação, devem ser diferenciados, o que é que podemos coordenar? Faria mais sentido procurar, por exemplo, que os politécnicos da região Centro adequassem entre si a oferta formativa e as universidades da região fizessem o mesmo entre si. Nós até já temos uma associação que reúne os Politécnicos do Centro – a Politécnica –, que prossegue também esse objetivo. O que se está a passar indicia que o que se pretende não é uma coordenação da oferta formativa mas um encerramento de cursos e de instituições.

Sem qualquer discussão prévia?

Sim, não tem havido qualquer debate. Mas temos assistido a um conjunto de pequenas medidas e posições públicas, de pessoas responsáveis, que apontam para uma tentativa de reduzir a oferta do ensino superior, sacrificando os institutos politécnicos, e penso que isso não interessa ao país. Esse será um grande desafio que vamos enfrentar nos próximos tempos: manter a instituição e fazer ver às pessoas que o ensino politécnico é o subsistema mais barato por aluno de todo o ensino em Portugal, desde o 1.º ciclo ao universitário. O valor que o Estado atribui por aluno no ensino politécnico é mais baixo do que aquele que atribui no ensino básico, secundário e universitário.

Nem o argumento económico justificaria a eventual opção de encerrar institutos politécnicos?

Se quisermos falar em racionalidade económica o ensino politécnico seria o último a fechar. Por estranho que possa parecer, até recebemos menos dinheiro por aluno do que o que Estado dá às escolas privadas do ensino básico. Se fossemos financiados pelo mesmo valor que é dado aos colégios privados – 80 mil euros por turma de 25 alunos – receberíamos muito mais dinheiro. No IPC recebemos em média 2.285 euros por aluno, por ano. Este financiamento é insuficiente, não chega sequer para pagar os ordenados. Este baixo financiamento acabará por ter reflexos na qualidade das estruturas e no ensino. Neste processo há o risco de se cometerem erros que podem vir a pagar-se caro. Estruturas como os politécnicos demoraram muitos anos a construir, envolvem grandes investimentos e não podemos correr o risco de as desmantelar, sem mais nem menos, porque fazem falta ao país.

Não acha então que há licenciados a mais em Portugal?

Criou-se a imagem de que existem demasiados licenciados em Portugal, o que não corresponde à verdade. Portugal é dos países da OCDE que tem os mais baixos índices de licenciados na população. Em 2010 a União Europeia definiu como objectivo que, em 2020, 40% da população entre os 24 e 34 anos deve ter, ou estar a frequentar, um curso do ensino superior. Neste momento não chegamos aos 30%. Hoje ter um curso de ensino superior, é cada vez mais um factor fundamental e imprescindível para um jovem entrar no mercado de trabalho.

A verificar-se a necessidade de reduzir cursos no ensino superior, como se deverá trabalhar essa área?

Desafio quem quer que seja a dizer qual é o curso que temos no Instituto Politécnico que seja universitário. Se existir, estaremos disponíveis para o fechar. Nós só temos cursos politécnicos. Mas sabemos que as universidades também estão cheias de cursos politécnicos. Temos é que saber se esta situação faz sentido. Se a legislação estipula um sistema binário, as universidades só devem ter cursos universitários e devem organizar entre si o ensino universitário e os politécnicos organizar entre si o ensino politécnico. Na Politécnica, associação que congrega os politécnicos da zona Centro, temos trabalhado para harmonizar a oferta formativa. E estamos disponíveis para fazer mais.

Admite que há necessidade de alguma adequação de cursos na região?

Sim, admito que possa haver alguma adequação de cursos à procura. Mas isto não pode ser visto numa perspectiva linear. Nós estamos a formar pessoas que vão entrar no mercado de trabalho daqui a três ou quatro anos, temos que ter cuidado ao planear o futuro. Por exemplo, hoje temos poucos candidatos a cursos na área da agricultura, mas todos admitimos que uma das saídas para o país vai passar pelo reforço da indústria alimentar. Portanto, cursos deste género são fundamentais para o futuro do país, e não podemos simplesmente dizer que se fecha o curso porque há poucos alunos. Temos é que convencer os alunos a escolherem estes cursos, que têm empregabilidade. Por exemplo, na Escola Superior Agrária (ESAC) temos uma oferta variada de cursos que podiam e deviam ter mais alunos.

O sub-financiamento do Estado é um problema para o IPC?

O financiamento preocupa-nos, pois o politécnico é o subsistema de ensino que recebe menos dinheiro por aluno. Quando foi discutido o último Orçamento de Estado, no final do ano passado, a Assembleia da República decidiu, contra a proposta do Governo, aumentar o orçamento do ensino superior em 42 milhões de euros, que seriam distribuídos pelas universidades e politécnicos. Esse dinheiro foi para o orçamento do Ministério da Educação e da Ciência, que já distribuiu, em fevereiro, a verba das universidades, mas ainda não entregou a parte que cabe aos politécnicos e não nos dá nenhuma explicação para este tratamento diferenciado. Estamos em junho e ainda não recebemos uma parte do orçamento que a Assembleia da República nos atribuiu e isso é inaceitável.

Qual é a fatia que vem do Estado no orçamento do IPC?

No IPC, em 2012, recebemos do Estado 65,8% do nosso orçamento. O resto provém de receitas próprias: perto de 29% das propinas e cerca de 6% da prestação de serviços. Precisamos de aumentar sobretudo as receitas que obtemos com o financiamento de projetos de investigação e com a prestação de serviços. Mas se compararmos os nossos dados do financiamento com o que se passa na Europa, concluímos que há uma distorção muito grande. Na Europa, a média do financiamento do Estado às instituições do ensino superior é de 72,8%. Em Portugal recebemos muito menos do Estado. Entre nós, as propinas correspondem a perto de 29% do orçamento enquanto a média europeia é de 9,2%.

O Estado não gasta assim tanto dinheiro com o ensino superior como se diz?

Não, gasta muito pouco dinheiro, comparando com a média europeia. É consensual, em termos europeus, que a qualidade do ensino superior público deve assentar no financiamento estatal, que não deve estar abaixo dos 70%. Em Portugal o financiamento do Estado é mais baixo e está a sobrecarregar as famílias que neste momento já pagam mais do que no resto da Europa. O modelo de sustentação das instituições tem de ser outro. Deve haver um financiamento maior do Estado, que admito que nesta altura seja difícil, e as instituições também têm que fazer a sua parte, através da prestação de serviços e interagindo mais com o mundo do trabalho.

Na sua candidatura defendeu justamente, como prioridades do próximo mandato, o desenvolvimento da investigação aplicada e uma maior ligação à comunidade, nomeadamente às empresas?

Sim, e neste momento, no IPC, criámos e estamos a desenvolver duas estruturas que vão ser decisivas para este projeto: um instituto de investigação aplicada, pois pretendemos que a investigação esteja ligada ao mercado de trabalho, às necessidades das empresas, à produção de riqueza e ao crescimento económico; e o INOPOL, que é uma estrutura de transferência de conhecimento, de criação de empresas. Os nossos investigadores – e temos muitos professores doutorados – fazem investigação nas universidades, com as consequências inerentes, ou seja, os benefícios e o prestígio desses projetos são assumidos por outras instituições. Esta situação não se pode manter.

Definiu também, como prioridade, a captação de novos alunos e novos públicos. Como é que isso pode ser feito?

Atualmente, estamos a assistir a uma grande migração de pessoas para Lisboa e Porto e as instituições de ensino superior do resto da pais, incluindo as de Coimbra, sofrem com isso. Se não fizermos nada para estancar essa migração, Portugal ficará reduzido a duas grandes áreas metropolitanas. Temos que saber se esse é o modelo de ocupação do território, que desertifica o interior, que queremos, ou se é importante para o país, não só para a economia, ter uma rede de ensino superior que cubra o território todo. É muito importante definirmos isso para podermos ter uma política de distribuição de vagas, de abertura de cursos e de financiamento das instituições que mobilize os estudantes para todo o território. Para além desta questão nacional, os politécnicos também podem atrair muitos jovens do ensino secundário que hoje desistem de estudar.

Há margem para novas apostas?

O ensino politécnico pretende criar cursos que possam dirigir-se a estes jovens, eventualmente oferecendo uma alternativa de formação compatível com os seus projetos de vida. Estamos disponíveis – e estamos a falar sobre isso com o Governo – para organizar cursos de curta duração que sejam muito profissionalizantes e que se dirijam para jovens que querem entrar no mercado de trabalho. Temos que demonstrar a esses jovens que entrarão mais rapidamente, e em melhores condições sócio-económicas, no mercado de trabalho com estes cursos profissionalizantes do que apenas com o ensino secundário. Neste momento essa via está a ser estudada e os politécnicos estão interessados em contribuir para isso. Portugal tem das mais baixas taxas de sucesso e de transição do ensino secundário para o superior da Europa, somos os que temos mais jovens que deixam de estudar no secundário.

Cursos profissionalizantes de curta duração irão atrair esses jovens?

Sim, mas achamos que esta alternativa de formação profissionalizante não deve ser menorizada e os jovens não devem ser estigmatizados, dizendo-se que é uma via para os mais fracos. A formação profissionalizante tem de ser valorizada socialmente, pelos responsáveis políticos e pelas instituições, criando bons cursos, mas não só. Temos defendido que uma das formas de a credibilizar é criar uma vertente profissionalizante que começa no pós-secundário e pode ter continuidade numa licenciatura, num mestrado ou num doutoramento profissionalizante. Não é obrigatório percorrer toda a cadeia, mas é importante que haja a possibilidade de chegar aos níveis mais elevados da formação dentro de uma lógica profissionalizante.

Esta vertente profissionalizante seria assegurada pelo ensino politécnico?

Seria uma fileira de formações profissionalizantes assegurada pelo ensino politécnico, paralela às formações das universidades, que são mais concetuais. Se temos um sistema binário, devemos associar ao ensino politécnico esta alternativa profissionalizante. Estes cursos, licenciaturas, mestrados ou doutoramentos, que são diferentes, têm que ser feitos em empresas, com teses focadas na inovação, e na resolução de problemas concretos das empresas. É também nesta perspectiva que defendemos que as instituições de ensino politécnico se devem passar a chamar de Universidades de Ciências Aplicadas. Se este percurso de formação completo, do pós-secundário ao doutoramento profissionalizante, for reconhecido, o que é difícil, porque há muitas corporações interessadas, poderemos ter aqui uma nova alternativa de ensino, mais ligada ao mercado de trabalho e mais interessante também para esse grupo de jovens que atualmente abandona os estudos, e que é significativo.

Como se fará o recrutamento de estudantes estrangeiros que incluiu entre as prioridades da sua candidatura?

Portugal tem uma excelente estrutura de ensino. Há países que não têm esta estrutura mas têm muitos jovens que querem fazer formação. Se calhar conseguíamos compatibilizar estas realidades diferentes fazendo a formação de jovens desses países. Podíamos começar por apostar nos países de língua portuguesa, mas também noutros. Isto já se faz noutros países, onde muitos dos estudantes são estrangeiros e pagam o custo integral do curso. O Governo tem uma proposta de alteração à legislação que vai permitir, se for aprovada, que as instituições de ensino superior possam também recrutar diretamente estudantes estrangeiros.

No IPC existem escolas com mais dificuldades que outras?

Diz-se muito que os politécnicos têm poucos alunos, porque habitualmente a imprensa faz grandes títulos quando saem os resultados da primeira fase de acesso ao ensino superior. Mas existem três fases de acesso para os alunos do secundário, para além de outros acessos, como os maiores de 23 ou os alunos de cursos de especialização tecnológica. No ano passado, no IPC, no final das várias fases, o índice de preenchimento de vagas foi de 105%, ou seja, preenchemos mais vagas do que as que tínhamos posto a concurso.

Mas existem cursos que têm menos alunos?

O nosso curso com mais dificuldades em recrutar alunos é o de Ciências Florestais, e não percebemos porquê, porque é altamente elogiado pela sua qualidade e pela qualificação do corpo decente, mesmo no relatório da agência de avaliação. Os alunos não acham a agricultura muito atrativa, mas talvez não saibam que hoje os cursos da Escola Superior Agrária são cursos de engenharia, baseados na tecnologia e na investigação laboratorial. Também o curso de música da Escola Superior de Educação (ESEC), tem tido menos alunos do que seria desejável, mas este curso exige alunos já com formação musical prévia e não se compadece com vocações tardias, pelo que o próprio campo de recrutamento é mais restrito.

Dora Loureiro

Entrevista publicada em 12-06-2013

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