Assisti há poucos dias a um programa na televisão dedicado a Joaquim Rodrigo. Muita coisa nele foi dito de bem e de mal e nem sempre, no meu entender, foi salvaguardada ou devidamente encaminhada a superioridade do diálogo, conseguindo-se por isso, algumas vezes, um enquadramento do compositor pouco abonatório do seu real valor intelectual. Para esta imagem muito contribuíram as suas netas com aquilo que lhes foi pedido ou permitido dizer, perguntar ou comentar.
No entanto não foi este facto que determinou a minha crónica de hoje. Passemos-lhe à frente, por conseguinte, para focalizarmos a atenção numa outra afirmação, que possivelmente terá passado despercebida, e que para mim determinou um momento de reflexão extraordinário. Foi quando um dos seus amigos, referindo-se às modificações emotivas do compositor, disse que algumas vezes, para perguntas de Rodrigo como “Quem sou eu?”, acompanhadas com choro e gritos lancinantes de identidade, aquele se limitava a dizer-lhe: “ És o autor destas músicas!” e tocava-lhas. Logo Rodrigo voltava ao seu estado de tranquilidade!
Por sua vez, também os psiquiatras (disse o mesmo amigo) eram capazes de lhe determinar, farmacamente, a mesma tranquilidade e “normalidade”, controlando-lhe o escuro do espírito e apaziguando-lhe a relação com a vida. Simplesmente, por este processo, Rodrigo ganhava a calma, mas também a inocuidade composicional!
Que afirmações mais interessantes e polémicas podemos ouvir a este amigo de Rodrigo, de seu nome Pepe, julgo.
Fica claro, na descrição acima feita, o confronto terapêutico entre dois mundos, assistido através de duas janelas de observação que dão para a mesma rua, mas que nos proporcionam paisagens e enquadramentos extraordinariamente distintos do dia a dia, feito festa, passado no coreto da vida que todos nós temos e somos! Por um lado o crescendo natural, com os olhos postos no fortissimo ; o adagio tornado alegro , pela atenção voluntária à agógica do homem maestro; o timbre tornado claro pela luz do dia que nos bate nos olhos!. Pelo outro, o crescendo seguro conseguido pela mesa de equalização ; o adagio tornado allegro pela força mecânica inversível da aceleração metronómica; o timbre tornado claro pela força da luz de néon, que ilumina de facto, mas não respeita as cores.
Todos os artistas têm, por essência, a sua emotividade “desnormalizada”. Sofrem muito sozinhos e gritam de alegria por razões que muita vez ninguém entende. Contudo, é graças a esta “desgraça” que conseguem ver as coisas bitoladas por uma quarta dimensão estética que é tanto mais consequente quanto mais alterada está a sua afectividade. Criar é tão somente aproveitar de forma superlativa um momento, mais ou menos duradoiro, de “anormalidade”. É sentir a globalidade orgânica eriçada pela determinação do pensamento. É sentir-se furioso e obcecado pela imagem a criar! Mas é também sentir-se impotente na escuridão do poço onde mora. É esquartejar, de irritação, o espírito pela agonia do vazio que se sente. É não ser ninguém no atropelo infinito das estradas que se querem!.
Joaquim Rodrigo por certo que foi muitas vezes atormentado por tudo isto. Nuns momentos acabava por se levantar olhando as coisas e encontrando o seu próprio espaço. A bengala era a música. Noutros sentia-se levantado e colocado num espaço que não era o seu, embora lhe permitissem lá estar! O elevador eram os fármacos.
Como será o Futuro?