Opinião – A igreja verde

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João José Pedroso Lima

João José Pedroso de Lima

Mateus era um dos funcionários africanos que trabalhava no meu laboratório. Tinha pelo menos mais dez anos do que constava do seu registo de nascimento e era um exemplo de dedicação ao trabalho. Faltavam-lhe os dentes da frente e, quando regressou do dentista, depois de nos termos cotizado no serviço para pagar a sua colocação, estava eu numa reunião do Conselho da Faculdade e foi aí que ele apareceu, à porta, com os lábios afastados, num esgar de enorme alegria, a mostrar a beleza da sua prótese, novinha em folha.

Era um amigo silencioso e um dia disse que me queria falar, particularmente. Apareceu quando lhe indiquei e então ele, com alguma dificuldade, disse-me que queria que eu e a minha mulher fossemos os padrinhos de casamento do seu sobrinho, que era como se fosse seu filho. Tinha vivido com ele desde pequeno. Disfarcei alguma comoção e aceitei sem hesitar.

A indicação que ele me deu, uns dias depois, para chegar ao lugar do casamento foi mais ou menos assim: “Vai na estrada do Xai-Xai, passa a Manhiça, encontra do lado direito uma bomba de gasolina depois o Botequim Sonho Africano e depois entra na segunda picada à direita. Não é na primeira que tem uma casa amarela antes, é na segunda. Depois vai na picada anda um bom bocado e à esquerda encontra uma igreja verde. É aí, às dez e meia”

Fiquei sem coragem de fazer perguntas pois uma igreja verde não devia ser difícil de encontrar.

Lá fomos, eu e a minha mulher aperaltados, no Saab vermelho, naquele manhã quente, direitos à cerimónia.

Chegámos à picada sem dificuldade de maior. Já tinha alguma prática de andar em estradas do tipo, onde não se pode andar muito depressa, mas comecei a ficar preocupado depois de andar uma hora, sem ver igreja nenhuma. Com mais meia hora comecei a ouvir a minha mulher: “Devemos ter trocado a picada! Devias era voltar para trás!”. Apesar de ser isso exatamente o que eu pensava não conseguia dominar a irritação ao ouvi-lo e respondia com um “Lá estás tu a estragar a festa!” ou qualquer outra idiotice do género.

Com duas horas de picada e meia hora de atraso, estava já a pensar em desistir, quando, numa clareira de árvores frondosas, apareceu, ao sol, uma igreja verde com uma multidão de africanos enfarpelados à porta.

Era uma enorme construção em madeira pintada de verde baço, que tinha sido uma missão, desativada há mais de trinta anos. As casas da aldeia, na maioria de madeira, ficavam a alguns metros e o aspecto geral era agradável.

Mateus veio ter comigo no meio das palmas e algazarra que a nossa chegada motivou. Pedi-lhe desculpa do atraso e ele sorriu, “Sabia que vinha”, disse.

O que se passou a seguir foi inesquecível. A missa foi cantada. Cânticos religiosos católicos que vieram da velha missão, com modificações e ritmo de marrabenta e salsa, cantados e dançados por todos os presentes. Senti-me num mundo diferente como se tivesse subido a um patamar do espírito que não conhecia. E lamentava, lamentava mesmo muito, não ter levado uma máquina de filmar, ou um gravador, para registar tudo aquilo.

Foi assim, por bem mais de uma hora. Veio depois a comida simples, saborosa, tropical, depois dança e muita festa.

Tudo foi diferente naquele casamento, de um casal que eu nem conhecia. Os aromas, os sons e os ritmos, as conversas ingénuas e comoventes, a felicidade espontânea, coletiva, o sermos ali os únicos europeus, as dificuldades na chegada.

Diferente também tanta felicidade com tão pouco…

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