Opinião – Quando for grande

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Francisco QueirósFrancisco Queiros

Naquela manhã, a jovem professora entrou na sala de aula a pensar no seu futuro ou na sua falta. Depois dos bons-dias à classe espreitou para a mala de mão a verificar se dentro do passaporte ainda se encontrava o bilhete de avião de partida para outro continente, talvez esperançada ainda que tudo o que vivia não passasse de um pesadelo. Ontem, a discussão com o namorado, contrário à partida, logo mais ao final do dia seria o sofrimento da despedida. Já antecipava o choro da mãe e da avó e pela certa um sufoco cortante e sem fim do pai, sempre calado, mas o que melhor a entendia. Que raio de vida! Um mestrado, com passagem de Erasmus pela Alemanha, vários anos de ensino, ora aqui, ora noutro sítio, substituições e desemprego. Uma vida adiada. Casar, mas como? Casa, onde? Decidira-se. Partia. Mas doía. Era o seu último dia de professora no seu país. Horas depois voaria para outro destino.

“Bom dia, professora”. “Bom dia, tinha planificado uma outra aula … mas pensando melhor…vão todos escrever um texto sobre o que querem ser quando forem adultos”.

E enquanto escreviam, num quase sem-barulho pouco habitual, ela pensava na tristeza da despedida e de novo espreitava para dentro da mala a conferir com os dedos a realidade do bilhete de avião, certificado de emigrante ou sentença de expulsão de uma mulher de 35 anos, professora às vezes, género mulher-a-dias moderna, sofisticada, altamente qualificada com um doutoramento quase pronto, interrompido, primeiro pela incumprimento do pagamento das propinas e agora pela partida.

Viajou pela vida, recordou a infância, o conforto da família, quando o conforto e a segurança não eram ainda zonas restritas, recordou paixões adolescentes e amores de mulher, sonhos, lutas pessoais e vivências colectivas. Dentro da mala, a espreitar entre as folhas do passaporte um bilhete de chamada, uma ordem de partida.

A campainha soou. Deixou-se ficar na secretária a ler as redacções.

“Quando for grande gostava de ser enfermeira como a minha mãe. Mas era para trabalhar num hospital cá em Portugal. Ir para a Suíça trabalhar e deixá-la sozinha, isso não”. “Eu quando for grande quero ser cientista. Queria trabalhar num grande laboratório, fazer experiências, mas se calhar tenho de ir viver para a América”. “Quando for grande quero ser arquitecto. Desenhar casas, museus, bairros inteiros. Pena se tiver de sair de Portugal.” “Sabe professora, eu quando for grande queria ter emprego, pagar a luz e a água, não ter os sapatos rotos e ter sempre comidinha quente e boa. Ser diferente dos meus pais…”.

Joana leu o último texto. Da autoria do Fernandinho. “Quando for adulto quero ser banqueiro. Ter muito dinheiro, mandar em todos. Dizer aos pobres para viverem mais pobres. Viajarei pelo mundo, compro carros e casas. E não me faltarão festas. No Carnaval, fantasio-me de sem-abrigo para gozar em grande…”.

Joana arrumou a mala, de lágrimas nos olhos.

Horas mais tarde entrou no avião, sem coragem de olhar para trás.

“O que disse, menina?”, perguntou-lhe uma velhota a seu lado. E Joana repetiu, ainda mais alto: “Porra!, quando for grande quero ter lugar na minha terra. E ser feliz! Muito feliz!” Chorava. O barulho dos motores do avião sufocou o seu grito.

 

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