A cantiga “Grândola, Vila Morena” foi escrita por José Afonso (Zeca) e editada em 1971 no álbum “Cantigas de Maio” do mesmo autor, que contava com a direcção musical de José Mário Branco. Para além de muito bonita, com uma letra poderosa, como são todas as letras de Zeca, esta música tem ainda um significado muito especial. Foi usada pelo MFA como 2.ª senha de sinalização da revolução de Abril de 1974. Era, por isso, a confirmação de que a revolução estava em marcha. É um símbolo muito importante que merece ser tratado com carinho e muito cuidado.
A democracia e a liberdade, de que a cantiga “Grândola, Vila Morena” é um símbolo, não são coisas garantidas nem perenes. Podem desaparecer, pelo que precisam de ser cuidadas, educadas e tratadas com muito atenção e dedicação. Não podem ser pura e simplesmente usadas, assim como a cantiga.
Vejo e leio o que se vai passando pelo país, com apupos, cantigas e amuos, e lembro-me de uma frase que li algures: “É preciso muita coragem para ser diferente e muita competência para fazer a diferença”.
Três ideias-chave que não vejo em nenhum dos lados da barricada: coragem, competência e diferença. Mas estas ideias estão bem marcadas na cantiga do Zeca Afonso, que as tratou sem nunca usar as respectivas palavras. Uma cantiga que apela a uma atitude nobre e séria (de missão) na gestão da coisa pública. Uma cantiga que dá corpo a um povo que está farto de enganos e de comprar gato quando pediu lebre. Está farto de ver os seus interesses, como cidadãos e contribuintes, sempre em último plano. Está farto de ver os contractos geracionais a serem sistematicamente rasgados, sem uma explicação, sem uma palavra. Está farto de ver, aparentemente sem capacidade de reacção, Portugal a morrer. No fundo um povo que vive angustiado por ver um sonho ruir. Um sonho que renasceu numa maravilhosa manhã de Abril de 1974, onde de novo uma nação descobriu que era capaz e se podia unir.
Aquilo que vejo, ouço e leio aponta para um caminho que levará a mais um MONUMENTAL ENGANO. Nada mudará, porque nada foi feito para isso. Será tudo um pouco mais do mesmo. Mais da mesma irresponsabilidade. Mais do mesmo comportamento ligeiro e impreparado. Mais da mesma ausência de compromisso e de respeito pela palavra dada. Mais das mesmas promessas irrealistas, feitas por quem não faz a mínima ideia do que deve ser feito. Mais da mesma incapacidade de olhar as pessoas nos olhos e dizer-lhes o que está certo, que vai ser muito complicado mas nós somos capazes, EM CONJUNTO, de mudar este país para algo de decente. Sem excepções. Sem tudo para alguns e nada para todos os outros. Sem justiça. Sem preocupação social. Sem moral cívica responsável. Sem uma ideia para Portugal, um país rico, com capacidades imensas e que pode ser, se quiser, um local de eleição nessa Europa sem valores, sem princípios e sem coesão. MUDAR, só se faz com uma ideia, um plano, compromisso e mobilização. E isso exige debate franco e aberto. Sem isso não há mudança verdadeira desse nome. Quanto muito há boas intenções mas sem sustentabilidade, e que no final serão inexoravelmente enganos e desilusões. Aparentemente, ENGANAR é fácil. Só conheço uma receita que é de certeza eficaz contra os enganos: ver, ler, ouvir, debater (e até cantar) e… PENSAR PELA PRÓPRIA CABEÇA. Por favor não PRESCINDAM DISSO. É isso que diz a fabulosa cantiga de Zeca Afonso.
(artigo também publicado no re-visto.com)
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