Opinião – Coimbra sem jornais na estação

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JULIO MARQUES MOTAJúlio Marques Mota

Chego à estação de caminho-de-ferro. Dirijo-me a um quiosque para comprar o jornal Público. Não vejo nenhum quiosque. Pasmo, dirijo-me a um empregado da CP. E pergunto: desculpe, sabe-me dizer para onde foi transferido o quiosque dos jornais. Transferido? Perguntou ele como reacção. Sim, retorqui. Não, não houve transferência, deixou de haver quiosque dos jornais. Coimbra, terceira cidade do país deixou de ter jornais na sua estação de caminho-de-ferro. E ao sábado ou ao domingo deixa-se então de poder comprar o jornal. Só o jornal?

Fui professor, sou-o ainda na alma, no meu sentir , na minha forma de pensar, na forma de me explicar, como aqui se vê, sou ainda um professor, mesmo que sem mérito. E lembro-me então de uma aula sobre efeitos da repartição derivados da globalização, os teoremas Lerener Samuelson e Stolper-Samuelson onde apresentei a mistificação que estava na altura a constituir os ataques produzidos por John Major, primeiro-ministro inglês, ao mercado de trabalho e às suas leis laborais na Inglaterra de então.

E o argumento de John Major era então que a abertura do comércio ao Domingo era feita e imposta no interesse exclusivo e soberano do consumidor e o exemplo por si dado era o de alguém que numa estação de caminho-de-ferro queria comprar uma Bíblia e teria o direito de a comprar. Teria que ter quiosques que lha pudessem vender! Em nome de Deus, portanto, se abatiam os direitos de quem trabalha! Foi assim e foi também assim que me senti com mais força a entrar para o comboio. Opunha-me ontem, como professor e inerentemente como cidadão numa aula de Economia Internacional, opunha-me hoje, na qualidade de cidadão, apenas, e assim é porque o modelo económico subjacente às duas realidades é exactamente o mesmo.

Abro a televisão e uma noticia, um desastre terrível para os lados da Sertã, numa estrada e num troço em obras, num troço perigoso que os muitos avisos dos homens da Sertã não chegaram para que este perigo fosse eliminado. As Estradas e os Caminhos-de-Ferro em Portugal será que têm verdadeiramente regulador, até para obras que muitas vezes são intermináveis. A CP mostrou que não tem regulador, que tem, isso sim, salas vazias, que tem secretárias sem director, que tem rendas de casa que do nosso bolso são pagas. Quanto às Estradas de Portugal, com a limpeza ou deslocalização, para a rua, dos quadros altamente profissionais que a Administração Sócrates operou sob a mão segura de Almerindo Marques, de modo a alargar o campo dos operadores privados para onde o próprio director também ele seguiu, para o Grupo BES, haverá ainda quem saiba o que é uma curva na Estrada? Haverá ainda quem saiba fazer a minimização macroeconómica dos custos de uma obra, daquelas que agora nunca mais acabam, quando no estrangeiro e quando assim é se trabalha dia e noite, dia útil, dia feriado ou Domingo que seja? E o resto? Já agora, quantos edifícios há assim em Coimbra, como o do Regulador da CP, em que são pagas as rendas mensalmente pelo Estado aos senhorios e que, simplesmente, estão fechados?

Hoje, é Domingo, e em muitas estações e pelos mecanismos de um modelo defendido e aplicado por John Major de então e pelos Passos Coelho de agora, ninguém poderá comprar uma Bíblia para se confiar na leitura a Deus, muito menos para comprar um jornal, dadas as condições de precariedade que este modelo na sociedade instalou.

E para os mortos deste acidente na Sertã as Bíblias serão abertas, serão lidas, serão sentidas. O nosso respeito profundo por estas vítimas, sinceramente. Pena é que venham a ser abertas somente as Bíblias e não também os processos de responsabilização política pelo que assim nos anda a acontecer.

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