Manuel Pedroso Lima
Não vem agora ao caso explicar as razões. O fato é que um jovem e inexperiente advogado de vinte e poucos anos se encontrava entre a nata da advocacia ligada à oposição democrática na defesa dos implicados no assalto do Banco de Portugal na Figueira da Foz, em meados da década de sessenta. Salgado Zenha, Mário Soares, Armado Bacelar, Cal Brandão e João Gomes eram alguns dos grandes juristas que davam a cara num processo que abalou, e de que forma, o regime salazarista. As longas semanas que durou o julgamento e o intenso convívio que me proporcionou com os Colegas mais velhos, mais sabedores e mais talentosos foram um meio único de aprendizagem de insuperável utilidade na minha vida profissional e que nunca foi esquecida.
Ao contrário do que se descreve no Novo Testamento, então não era a sabedoria do Menino que espantava os Doutores, era o Menino que, no meio de um julgamento muito exigente, procurava, como uma esponja, apreender a incrível técnica de interrogatório de testemunhas, o brilhantismo da oratória e a pertinência de todas as intervenções dos meus Colegas e Mestres. Mas acima de tudo encontrei nesses brilhantes juristas aquilo que a sociedade espera de um advogado: a defesa sem concessões daquilo que entende ser justo e a capacidade de defrontar frontalmente, assumindo os riscos, os representantes de um poder não legitimado.
Foi uma lição de vida que não esquecerei.
Também não esquecerei alguns episódios ocorridos durante as sessões do julgamento e que merecem ser divulgadas. Assim, logo na abertura, quando na hora marcada nos preparávamos para o início dos trabalhos, verificou-se um atraso anormal que, à medida que se ia prolongando, fazia aumentar a surpresa e a inquietação. Finalmente, lá entraram os Juízes e o Presidente do Tribunal, de uma forma atabalhoada, anunciou que a sessão teria que ser adiada visto que o cabecilha do assalto – Hermínio da Palma Inácio – tinha fugido da prisão na noite anterior. Retenho com toda a nitidez o que a seguir se passou: num ápice, Mário Soares pulou para cima da bancada dos Advogados e com a toga a esvoaçar gritou de dedo apontado para o Presidente do Tribunal: “Mataram-no, Mataram-no, Assassinos!!” No meio do burburinho gerado, o Juiz berrava que não que o Palma Inácio tinha mesmo fugido. Foi então que o Dr. Armando Bacelar nos diz: esperem, realmente há poucos dias fui ver o Palma à prisão e ele disse-me que se chovesse fugia. Ora ontem a noite caiu uma grande chuvada no Porto! Se calhar fugiu mesmo.
E tinha mesmo fugido! Palma Inácio tinha as grades da janela da cela serradas e disfarçadas com a cinza do seu eterno cachimbo. Só que a cela dava para um telhado de zinco dois metros abaixo e ele precisava que a chuva abafasse a sua queda quando saltasse sobre ele. A chuvada que caíra na véspera do julgamento deu-lhe enfim a possibilidade de o ruído do seu salto ser abafado e passar despercebido.
A partir dai a fuga era uma brincadeira.
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