As ruas do nosso descontentamento

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Agora surgem como novidade os romances feitos em lugares onde os autores nunca foram, considerando-os como só possíveis agora por força do Google que tudo permite descobrir e, até, sentir. Todos parecem unânimes em que isto é possível. Mas são-no só limitadamente porque os lugares em causa têm abundante informação na Internet.

Mas, antes já escritores como Camilo Castelo Branco o tinham feito com base na sua biblioteca variada e abundante. Também agora com base num livro do antropólogo Mendes Correa sobre a sua viagem ao Brasil em 1935, que comprei no Rio de Janeiro, sei: “Ora Alcântara Machado nunca estivera em Coimbra e reconstituíra a vida académica coimbrã sobre leituras…” 1
Era talvez um tempo em que quem escrevia tinha como objetivo elucidar e contar tudo como tinha acontecido. Circunscrevia-se a lugares limitados onde os escritores que os amavam os descreviam com rigor apaixonado. Acontecia no Rio de Janeiro com João do Rio, cujos livros me servem de guia quando aí me desloco. Acontecia em Coimbra com os muitos escritores cuja listagem é impossível por mim que aqui vivo há muitos anos. Contudo, nada substitui o sabor de uma refeição em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, como local de gastronomia multicultural e onde os seus habitantes defendem energicamente o bondinho que aí teve um desastre, sendo agora ameaçado de substituição por qualquer desumana tecnologia moderna. Ou então, um espetáculo de Teatro no Leblon, no meio dos que nele participam vendo, rindo e aplaudindo partes bem conseguidas do Deus da Carnificina, que aí vi, agradado com atores e público.
Infelizmente, agora somos confrontados com omissões que pretendem esconder o real e “informações” que tentam baralhar quem quer pensar o país e o mundo. Por outro lado, uma muito bem paga matilha de comentadores defende as canelas dos homens do poder, tentando embaralhar raciocínios. Também o fazem os homens que, no bloco central de interesses se digladiam pelo poder sempre transitório. Fazem-no numa alternância sem futuro nem esperança. Estão prisioneiros do neoliberalismo que lança os povos, onde se instalou como teoria guia, num desespero sem sentido.
De facto, para furar este muro de silêncios e manipulações deliberadas de consciências, há que ir aos locais, onde os seus habitantes vivem vidas que desconhecemos porque delas ninguém fala. Nada substitui por isso as ruas onde vemos gente que ri, luta, sofre. Acontece nas ruas como sala de visitas de tanta mágoa e dor, que devemos entender como lugares da alegria possível, de contentamento e descontentamento. E na verdade, são-no tanto pela ausência dos seus habitantes sem esperança, como com a presença destes, bem cheia de esperança porque protestam, embora o façam com olhares carregados de amargura infindável, mas que alguns teimam em esquecer e, até, submergir nas águas paradas da inconsciência criminosa.
Não nos calemos e ouçamos as vozes submissas. Falemos alto.

1 Mendes Correa – Cariocas e Paulistas – Impressões do Brasil, Fernando Machado & Cª, Porto, 1935, p. 135.

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