A pandilha

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Francisco Queirós

Discute-se hoje na Assembleia da República a proposta de Lei do Arrendamento, a que na verdade deveríamos apelidar de proposta de Lei dos Despejos.

Esta proposta a ser aprovada constituirá a negação do direito à habitação que a constituição consagra no artigo 65.º, representará a fragilização absoluta dos direitos dos inquilinos e arrendatários, o despejo na hora.

Antevê-se uma hecatombe num país com quase 800 mil fogos arrendados e onde as rendas poderão, à luz da nova lei, sofrer aumentos brutais, enquanto que os despejos se tornam imediatos após o incumprimento do pagamento de duas rendas e onde os cidadãos já gastam, em média, 30 por cento do seu rendimento com a habitação e onde também há 140 mil famílias com crédito à habitação vencido, à média de 34 famílias por dia.

A ser aprovada a proposta do Governo do senhor Coelho ganha a especulação imobiliária, multiplicar-se-ão os despejos sumários, num país onde centenas de milhar de famílias já não têm um teto digno e encerrar-se-ão inúmeros pequenos estabelecimentos e lojas, em particular as instaladas nos bairros antigos e centros históricos das cidades!

“Era uma casa muito engraçada/não tinha teto, não tinha nada/ninguém podia entrar nela não/porque na casa não tinha chão”. O poema que milhões de crianças aprenderam cantando é da autoria do enorme Vinicius de Moraes. A letra não engana! Vinicius diz tudo sobre a rua dos bobos. A casa onde “ninguém podia dormir na rede/Porque na casa não tinha parede” e onde “Ninguém podia fazer pipi / Porque pinico não tinha ali” tornou-se famosa, popularizada em “A Pandilha em Português” no início dos anos 70. Mas a realidade do texto desse colossal poeta não é assim tão feliz e não foi por acaso que dei por mim a trautear a canção que aprendi na infância enquanto lia a proposta de lei. Honra seja feita a estes legisladores, as suas leis emocionam, não como a poesia de Vinicius, mas pelo que de trágico promoverão! A casa “onde ninguém podia entrar nela não, era feita com muito esmero, na rua dos bobos, número zero”.

Seria a casa de Vinicius da rua dos bobos diferente daquela outra que tantas saudades deixava, nesses tempos de miséria, não os de hoje ou os que se anteveem, mas outros tempos, os do tempo de Salazar. “Que saudades eu já tinha/da minha alegre casinha/tão modesta como eu/Como é bom, meu Deus, morar/assim num primeiro andar/ a contar vindo do céu. O meu quarto lembra um ninho/ e o seu teto é tão baixinho/ que eu, para me ir deitar, / abro a porta em tom discreto, digo sempre: “Senhor teto, / por favor deixe-me entrar.” E o teto deixava, até porque “tudo podem ter os nobres/ ou os ricos de algum dia, / mas quase sempre o lar dos pobres/ tem mais alegria.”

1943 – “Minha Casinha” de Silva Tavares e António Melo, de manhã saltava-se da cama e ao som dos pregões de Alfama tratava de se levantar, porque o sol, seu namorado, rompia as frestas no telhado e a sorrir ia-o acordar. Alegre casinha!

2012 é hoje. Reoiço a Pandilha e os versos do imortal Vinicius. “Ninguém podia dormir na rede/Porque na casa não tinha parede/Ninguém podia fazer pipi /Porque pinico não tinha ali /Mas era feita com muito esmero /Na rua dos bobos, número zero/Mas era feita com muito esmero /Na rua dos bobos, número zero.”

“Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” – artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa.

Novos tempos. Velhas pandilhas!

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