Carta aberta a Manuela Ferreira Leite

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Vítor Almeida

A antiga ministra Manuela Ferreira Leite afirmou que os doentes com mais de 70 anos que precisem de hemodiálise devem pagar os tratamentos.

Cara dr.ª Manuela Ferreira Leite

Tenho V. Ex.ª em memória como pessoa afável e de humor extraordinário. Conheci V. Ex.ª pessoalmente na campanha eleitoral, há cerca de 10 anos, num mês frio de Novembro, para as eleições autárquicas em Arganil. V. Ex.ª nessa altura concorria para presidente da Assembleia Municipal de Arganil. Perdeu as eleições, mas ganhou muitos amigos nessa bela terra, pobre, mas orgulhosa, na Serra do Açor. Lembro-me do carinho com que Vexa. (e digo isso sem qualquer ironia) falava com idosos que vivem isolados em aldeias com uma dúzia de habitantes, como a Malhada Chã, Teixeira, Ribeiro, Agua d’Alte, preocupada com os seus problemas, nomeadamente o difícil acesso ao Serviço Nacional de Saúde. Sem consultas regulares, sem transportes para o centro de saúde, que dista a 30 km, sem os filhos para os apoiarem, e sem dinheiro para a medicação, estes idosos abriam o seu coração a uma senhora que estimo como poucos políticos deste país. (…) O povo do Piódão nunca se esqueceu das suas visitas, e boas memórias ficaram dessa campanha. Perdida politicamente, mas humanamente uma revelação para mim. Hoje ouvi esta notícia. Li e reli. Compreendo a preocupação com o financiamento do SNS. Como médico que fez um juramento, obviamente, custa ouvir. Como contribuinte compreendo a necessidade do uso criterioso do dinheiro limitado de que dispomos. Como cidadão que acredita em Portugal como sendo um país (ainda) com valores, é que já não compreendo e não aceito.

Permita-me humildemente, pedindo perdão pelo meu português de 4.ª classe (como ex-emigrante licenciado na terra da nossa amiga Angela, nunca tive acesso ao ensino da língua materna, porque nessa altura ser emigrante não era “chique”, enquanto agora já é sinal de “patriotismo”…), que lhe coloque algumas perguntas. Se souber responder, agradecia que o fizesse publicamente, nomeadamente para que os arganilenses e os militantes do PPD/PSD fiquem elucidados sobre as suas ideias:

Inviabilizar diálises a idosos com mais de 70 anos, que não consigam pagar, é simplesmente homicídio. Não me considero católico praticante, mas todas as culturas judaico-cristãs e muçulmanas colocam o valor da vida acima de tudo. Permita-me perguntar se mudou de conceito moral e religioso.

Permita-me perguntar se V. Ex.ª, que nasceu a 3 de Dezembro de 1940 (portanto ultrapassou há pouco a barreira do “dialisável” gratuitamente), não sente compaixão com os “não-dialisáveis por pobreza”, a quem pedia o voto naquele magnífico inverno no Piódão.

Permita-me perguntar-lhe se na sua óptica, o seu primo afastado, Pedro Santana Lopes, provedor da Santa Casa da Misericórida de Lisboa, filho também desta magnífica terra chamada Arganil, concordará com as suas posições que considero pessoalmente, e sem ofensa, como anti-cristãs.

Permita-me questionar se o Sr. Presidente da República, Professor Cavaco Silva, nascido a 15 de Julho de 1939, merece ser “dialisável” porque pode pagar, enquanto o falecido Zé “da Índia”, da aldeia de Relvas, com insuficiência renal crónica, agora já não teria direito a tratamentos de qualidade.

Permita-me perguntar se tem a noção de quantos potenciais votantes iriam falecer antecipadamente, ou passar a vida a coxear com dor e sofrimento, porque não merecem uma prótese de anca. Permita-me perguntar se terá coragem de dizer isto numa futura campanha em Arganil ou em Lisboa, ou onde seja.

Permita-me perguntar, como ex-ministra da Educação, se “educar” é ensinar os meus filhos, ou os seus queridos netos, que a vida de um ser humano não vale nada após os 70 anos, e que o que importa são “spreads”, “PIB’s”, “juros”, em absoluto desrespeito pela idade e por aqueles que nos educaram com muito sacrifício. (…)

Permita-me por fim perguntar-lhe se eu, como médico anestesista e orgulhoso por trabalhar no INEM, futuramente, e na sua ideologia aqui exposta, deverei deixar de anestesiar doentes com a idade do Ex.mo dr. Mário Soares, nascido a 7 de Dezembro de 1924, caso sofram de uma fractura da anca; se deverei deixar de tratar doentes da sua idade com edema agudo do pulmão; se serei obrigado, como médico do INEM, a recusar ir de VMER para socorrer uma vítima de AVC, sem primeiro ter a certeza de que o “supra-septuagenário” tem posses para pagar.

Para resumir; a vida tem preço, e neste Portugal, só tem direito a viver quem consegue arranjar um emprego bem remunerado, seja por mérito, por “cunha” ou por vigarice. Aqueles que toda a vida trabalharam arduamente, a regar milho, apanhar azeitonas e criar gado, em Arganil, e que votaram em si, afinal não merecem o SNS, que de gratuito, para sua informação actualizada, já nada tem? (…)

Com esta entrevista pode ter ganho politicamente perante os grupos económicos poderosos que controlam esta Europa em fragmentação, cada vez mais “neo-liberal”, cada vez mais autofágica, cada vez mais egoísta e anti-valores. Mas perdeu humanamente… deixou-me simplesmente triste… mas perdoo-lhe.

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