Amarelo

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Salvador Massano Cardoso

Amato Lusitano, uma das maiores figuras que Portugal viu nascer, morreu de peste em Salónica.

Doente, apercebendo-se do fim, lembrava-se com mais frequência da bem-amada e longínqua pátria. Uma pátria que se acostumou a perseguir e a expulsar os que são inconvenientes ou os que não perfilham determinadas doutrinas.

Ao morrer não pensava na morte, nem naquilo que se lhe segue, se é que se segue algo, pensava apenas nas dores que sentia e “no ar que já não consegue vivificar os pulmões – e eu penso sobretudo nos livros que ainda gostaria de escrever, mas que nunca escreverei…”.

Todos se afastaram dele, a peste assim o determinava, exceto a bela Almitra que o auxiliou com ternura nos seus delírios e sofrimento.

A peste determinou muitas condutas e regras. Uma delas a necessidade de estabelecer o aviso de perigo, através do içar da bandeira amarela, nos navios, nos portos ou em localidades. Amarelo a cor do perigo, da peste. Em pequeno, aprendi que era a cor da fome e poucos gostavam dela. Eu não sei porquê mas gostava imenso.

Recordo que, de todos os lápis de cor, gostava muito do amarelo. Talvez por ser mais suave a pintar, não se visualizando os riscos produzidos pelas outras cores, ou então por o associar ao sol. Mas porquê o amarelo como sinal de perigo? Terá sido devido à representação dos quadros clínicos de palidez acentuada das doenças, da febre amarela, por exemplo? Não sei.

Jorge Luís Borges confessa que é a última cor a desaparecer para quem perde a visão. Com o tempo a névoa visual acentuava-se cada vez mais, fazendo com que perdesse a capacidade de ver as cores, até chegar ao momento em que só conseguia descortinar o amarelo dentro de todo aquele nevoeiro. Era a única cor que conseguia ver, todos as outras tinham desaparecido.

Talvez o amarelo seja a cor mais visível em condições péssimas de visibilidade, daí, dizia Borges, talvez seja por essa razão que os taxis nova-iorquinos são amarelos, mais fáceis de identificar no espesso nevoeiro. Uma tirada tipicamente borgiana.

Andamos mergulhados num espesso nevoeiro, cheios de riscos. Seria melhor colocar bandeiras amarelas em todas as atalaias possíveis advertindo dos perigos que estão a ser construídos neste país. São muitos.

Começo a partilhar da filosofia do médico Amato Lusitano, que nasceu em Castelo Branco em 1511e que foi pouco lembrado em 2011. O habitual, nada de novo, os portugueses são mesmo assim, esquecem-se facilmente dos seus maiores ou, então, continuam a não apreciar quem tenha professado ou professe a religião de Moisés, não os considerando como compatriotas.

Quando se está a morrer não se deve pensar na morte, apenas nas dores e “no ar que já não consegue vivificar os pulmões”, mesmo que não consigamos ver a última das cores, o amarelo…

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