Canção do ceguinho

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Massano Cardoso

Ultimamente tenho sido agredido por imagens do passado. Uma delas remonta aos tempos de criança. Tinha ido visitar umas tias velhas no concelho vizinho. Como era “especialista” em andar de comboio, apesar da pouca idade, fui vê-las a conselho dos familiares e aproveitei para lanchar um valente pão de centeio barrado com manteiga deliciosa e beber uma caneca de café a fumegar, cujo aroma não consigo, e nem quero, libertar-me. Havia alturas, sobretudo durante o verão, em que uma delas, a mais simpática, e às escondidas, trocava o conteúdo negro pelo rosado “morangueiro”, a outra nem se apercebia, e sempre acompanhado de um piscar de olho maroto, mas no inverno achava que seria mais conveniente atestar-me com o café de mistura.

Naquela tarde, cinzenta, triste, a prenunciar chuva e com a luz a fugir a grande velocidade, despedi-me para poder ir apanhar o comboio a apenas três centenas de metros, onde o meu tio era o chefe da estação. Não tinha receio, por esse motivo, de perder o comboio que me levaria até à estação vizinha onde morava. Calcorreei um caminho de cabras e, no momento em que cruzava com outro, vindo de um pequeno aglomerado de casas escondidas atrás de uns pinheiros, mesmo junto à via férrea, deparei-me com um casal. A mulher, cega, alta, magra, com uma sacola de pano ao ombro, como usavam os ardinas, empunhava com uma das mãos um bordão e na outra uma folha amarela como se estivesse a vender um jornal, cantava, acompanhada de um homem, mais novo, mais magro, mais baixo e mais escanzelado, a tocar acordeão. Olhei em volta para ver se havia alguém a assistir à cena, mas não. Aproximei-me e parei em frente dos dois cheio de curiosidade. A mulher entoava, com voz agradável, a “canção do ceguinho”, declamando um drama ocorrido lá para o norte, em que o pai matou a filha por causa de amores. Empunhava a folha onde estava todo o drama, em verso, que qualquer um podia comprar. Não me recordo quanto custou. Lembro-me de procurar no bolso algumas moedas. Vi que tinha o suficiente para adquirir a folha. Comprei a folha a fim de “apreciar”, e fazer as delícias dos outros, uma tragédia real que andava a ser cantada pelas aldeias. Eu já sabia que em tempos havia pessoas que andavam de terra em terra a cantar dramas e episódios de “faca e alguidar”. A minha avó contava muitos episódios desses, que viu e ouviu em miúda, relatando-os com muita facilidade, alguns ainda em verso, o que lhes conferia uma sonoridade única. Foi a primeira e a única vez que assisti a tal cena. O progresso da comunicação, rádio, jornais e a recém nascida televisão substituíram esta forma de comunicar. Mesmo sendo mais requintadas, rápidas e acessíveis, as novas formas de informar mantinham vivas o desejo das pessoas em se deliciarem com o grotesco, com o trágico, com tudo o que fosse coscuvilhice. Não se conseguia descortinar mudanças de comportamento com as novas tecnologias, nem tão pouco com a aquisição de mais e melhor nível de cultura ou de instrução. Pelo contrário, a rapidez de transmissão das notícias deste jaez começou a originar uma verdadeira dependência trágico albarranista, obrigando à divulgação de tudo o que pudesse alimentar esse estranho sentimento, que nos caracteriza de forma ímpar, “a fome de tragédias alheias”. A epidemia está instalada e não há meios de a conter. Agressiva, despudorada, parcial às vezes, insultuosa outras, incapaz de contribuir para a melhoria do comportamento humano, rola nos diferentes mundos da comunicação sem conseguir alcançar a estranha sonoridade e poesia das “canções do ceguinho”. Quase que apostaria, que os equivalentes atuais dos protagonistas da “canção do ceguinho” o que pretendem é cegar-nos. E estão a conseguir!

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