A lição do crédito

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Maria Manuel Leitão Marques

O crédito serve para comprar hoje e pagar mais tarde uma casa, um carro, uma viagem. Serve para investir na produção de um bem, reembolsando o empréstimo depois de o vender. É indispensável para a economia, para as empresas, e ajuda as famílias a antecipar as suas poupanças futuras. Mas tem um custo, os juros, e tem riscos. Para quem empresta, normalmente bancos ou sociedades financeiras, o risco de não ser ressarcido desse valor. Para as empresas, o risco de não vender o que produziram. Para as famílias, o risco de não conseguirem poupar o que planearam, porque perderam o seu emprego, por um factor imprevisto de natureza pessoal (um divórcio, uma doença) ou porque fizeram mal as suas contas.

Por isso mesmo, o crédito deve ser usado apenas quando necessário, muito em especial pelas famílias menos treinadas para gerir o risco. Com simulações, com hábitos de poupança já comprovados, evitando o multi-endividamento, nunca comprometendo mais de um terço do rendimento mensal para pagar empréstimos, supondo que esse rendimento permite suportar esses encargos.

Escrevi e repeti estas palavras muitas vezes, desde 1998, quando disparou o crédito ao consumo e à habitação em Portugal e criámos, em Coimbra, o Observatório do Endividamento. Não para diabolizar o crédito, mas para avisar os consumidores dos riscos em que se envolviam e estimular a educação financeira, que deve começar muito cedo na vida. Igualmente, era importante pressionar a banca a fornecer mais informação aos seus clientes e a verificar melhor a respectiva taxa de esforço, e o Estado, em especial o Banco de Portugal, a obrigá-la a adoptar esses procedimentos.

Mas os anos que se seguiram não ajudaram muito a que se tivesse esse tipo de cuidados. Pelo contrário. Os empréstimos para a habitação, que antes disso cobriam apenas uma parte do valor do imóvel, passaram a cobrir 100% ou perto disso, com um prazo de pagamento muitíssimo dilatado. E até mais: mascarado de crédito para supostas obras, já agora por que não compra também a mobília? Esta situação criou uma forte ilusão do dinheiro fácil, de que qualquer casa está ao nosso alcance em qualquer fase da vida, de que não é preciso poupar antes, por pouco que seja, para adquirir habitação própria. Vi ao longo destes anos jovens famílias, quase no início de vida, a comprar moradias ou apartamentos com áreas muito acima das suas necessidades imediatas e, ao mesmo tempo, a trocar de carro e a viajar para locais distantes. Quase sempre com crédito a 100%. Fora as segundas habitações que por aí proliferaram. Todos vimos com certeza.

Quando chega o momento das dificuldades, mesmo que o actual tenha uma forte carga de inesperado, partimos à procura de um culpado. Com certeza que o sistema financeiro tem a maior fatia de responsabilidade nesta crise, para não dizer toda, o que, infelizmente, é ignorado tantas vezes, colocando-se esse peso sobre a dívida pública que serviu para pagar prestações sociais e bens colectivos que estão aí para os usarmos, alguns eventualmente dispensáveis, mas a maioria nem por isso. Mas nunca devemos esquecer também a nossa responsabilidade individual, a de quem se endividou em demasia, a de quem ignorou o risco, a de quem achou que, com crédito, quase tudo estava sempre ao seu alcance. Que nos sirva de lição. Quanto ao crédito, esse por ora desapareceu, até mesmo para as empresas que dificilmente podem sobreviver sem ele.

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