“Temos que encaminhar os cortes no financiamento para áreas que tenham menos efeitos nos doentes”

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Foto de Gonçalo Manuel Martins

Presidente do conselho de administração do Centro Regional de Oncologia de Coimbra/IPO desde 1990, Manuel António Silva admite alguma preocupação perante os cortes no financiamento impostos aos hospitais. Como coordenador nacional para as Doenças Oncológicas, defende a criação da rede de referenciação hospitalar em oncologia, que permitirá reorganizar estes serviços.

Como está o tratamento do cancro em Portugal?

O tratamento do cancro em Portugal está a decorrer, até agora, sem grandes alterações. As entidades capacitadas para fazer esse tratamento, a começar pelos IPO e hospitais universitários, têm mantido a mesma dinâmica. Mas a situação não vai continuar assim, devido aos cortes nas despesas anunciados. Temos que encaminhar estes cortes no financiamento para áreas que tenham menos efeitos nos doentes, ou seja, não cortar em medicamentos ou em análises.

É o que está a ser feito no IPO de Coimbra?

Sim, não deixámos de consultar ou operar doentes, nem deixámos de comprar medicamentos, por causa disso, não temos tido alterações na resposta ao doente oncológico. No IPO de Coimbra, que é autossuficiente em meios complementares de diagnóstico e tratamento, temos conseguido, com algum esforço, manter a capacidade de resposta, sem ter que comprar serviços ao exterior. Excetuando alguns TAC, que temos fazer no exterior, ou quando é necessário o recurso ao PET, que não temos, os nossos serviços respondem. Quando recorremos ao exterior fazemos concursos para escolher a entidade que nos dá as melhores condições, em termos de qualidade e de preço.

Que repercussões podem ter os cortes no orçamento dos hospitais e a redução de 50% no pagamento das horas extraordinárias?

As nossas horas extraordinárias são orientadas para os profissionais que fazem cirurgia adicional e julgo que não é por isso que os profissionais vão deixar de fazer o trabalho que é necessário. Mas é um problema que vamos ter que gerir. Tal como termos menos 11% no orçamento atribuído ao hospital.

Como vai reduzir a despesa em 11%?

Vai ser muito difícil. O IPO de Coimbra nunca fechou um ano com saldo negativo, conseguimos sempre um saldo positivo, o que significa que sempre tivemos uma gestão cautelosa, rigorosa. Nós não temos desperdícios. Nesta casa os profissionais cumprem e sempre trabalharam para conseguir a qualidade máxima. Obviamente não vamos cortar no que é essencial, o tratamento dos doentes. Mas não temos muito por onde poupar porque não temos exageros, tentamos poupar em tudo, até na eletricidade, pela qual pagamos dezenas de milhares de euros. Nas horas extraordinárias não temos muito onde poupar. Não temos urgência aberta ao exterior, porque sempre me opus, porque já existia uma a poucos metros do IPO. Poderemos talvez reduzir gastos no transporte do doente, através de uma melhor filtragem dos casos.

Numa área como a oncologia, estes cortes exigidos na despesa são mais preocupantes?

Uma área como a oncologia deve ser tratada com mais algum cuidado, deve ser uma área protegida. Porque é uma área de muita gravidade, de uma doença que surge nalguns casos por erros das próprias pessoas, mas na maior parte dos casos sem intervenção da pessoa. Há outras doenças que são mais bem subsidiadas e que podiam ser mais facilmente evitadas pelas pessoas, com alguns cuidados. É difícil fazer esta comparação, mas a oncologia deve ter um cuidado e um tratamento muito especial.

Porque a prevenção e a intervenção precoce podem salvar vidas?

O problema é claramente esse. A área da oncologia exige um cuidado especial e um investimento capaz, que se começar logo nas áreas da prevenção pode poupar muito dinheiro nos tratamentos. Temos que continuar a investir na oncologia médica, na área da prevenção, e temos feito isso na zona Centro. Temos a região praticamente coberta pelos rastreios do cancro do colo do útero, da mama e do cólon e reto, ou seja, os três rastreios aceites pela União Europeia. E isto é prevenir o cancro, é evitar a doença. Há outras patologias que não podem ser evitadas. Temos que investir na prevenção, educação para a saúde, diagnóstico precoce, prevenção primária e prevenção secundária. É fundamental podermos fazer esse trabalho e ter apoio no tratamento de uma patologia que quando surge pode ser fatal e abala todo o núcleo familiar.

Que principais constrangimentos que poderão surgir devido aos cortes anunciados?

Estes constrangimentos poderão surgir fundamentalmente nos citostáticos, medicamentos de ponta no tratamento do cancro. A ciência está sempre a evoluir e os medicamentos são cada vez mais diferenciados, mas também cada vez mais caros, e tem que haver um cuidado muito grande em usar bem os fármacos que temos. Ou seja, para uma infeção temos que usar um antibiótico, mas numa inflamação podemos usar o anti-inflamatório. Podemos ser muito mais competentes, mais eficientes e menos gastadores, e isso é muito importante em oncologia, e também nas outras áreas.

Existe o perigo de se descurar a prevenção do cancro com a redução de financiamento?

Neste momento não há esse perigo, mas não sei como será em 2012. Mas aquilo que é possível prevenir tem sempre menos custos, em termos humanos e financeiros, do que tratar a doença a posteriori.

Neste cenário é fundamental pôr a funcionar a rede de referenciação hospitalar em oncologia?

Como coordenador para as Doenças Oncológicas, era um dos trabalhos que estava a desenvolver, com uma equipa de voluntários a trabalhar nessa área, e que gostaria de ver concretizado, porque traz mais-valias, em termos de poupanças mas sobretudo na qualidade de tratamento. Neste momento a rede de referenciação hospitalar em oncologia está parada, estou à espera de orientações do novo governo. Mas é muito importante esse investimento na criação da rede de referenciação, que permitirá uma definição clara de quem deve tratar o quê. Os diversos cancros têm diversos locais onde podem ser tratados e temos que fazer essa seleção com a concordância das instituições, avaliando a capacidade e a diferenciação de cada unidade. Alguns cancros podem ser tratados noutras instituições que não os IPO e essas instituições podem tratá-los de forma mais barata e mais eficiente, aliando-se a outra entidade hospitalar não têm as capacidades todas, por exemplo para fazer a radioterapia. A mobilidade do doente e colaboração inter-hospitalar é que nos vai trazer mais-valias com menos custos. Caso contrário, teríamos que ter aparelhos de radioterapia em todos os hospitais e não há país que aguente.

A rede de referenciação poderia clarificar a questão de que centros devem tratar a oncologia, uma vez que se tem falado numa reorganização destes serviços?

Sim, permitiria clarificar qual é a capacidade de tratamentos dos diversos centros. A reorganização deveria passar pela rede, pela continuidade da criação de um banco de tumores e por uma boa distribuição dos equipamentos dispendiosos em oncologia, que têm que ter critérios muito rigorosos, geográficos e de proximidade, para serem colocados.

Porque os medicamentos e os equipamentos, que exigem uma atualização constante, são muito dispendiosos…

Há todo um trabalho que tem que ser feito nesta área. Um dos projetos que tínhamos na coordenação das Doenças Oncológicas, com a ACS, era constituir um grupo de trabalho – até já estava constituído – que iria cruzar dados do registo oncológico, número de doentes que os hospitais registavam e gastos em citostáticos desses mesmos hospitais. Não se conhecem esses números.

Admitiu que uma das áreas onde é possível reduzir custos é no transporte de doentes.

Os gastos em transportes de doentes têm aumentado. É um problema que à partida não é da instituição, mas de quem nos envia os doentes, os Agrupamentos de Centros de Saúde. Salvo para os doentes que por indicação clínica não podem ser transportados em transportes públicos, mas assumimos claramente esses casos. Pedimos apenas mais rigor, uma vez que os centros de saúde deixaram de assumir esse custo, e não se organizou, na ARS, um sistema que cobrisse todos os centros de saúde e hospitais. No IPO estamos a tentar arranjar uma organização, que pode passar por contratar empresas que possam fazer esse serviço com preços acessíveis para os doentes que socialmente não têm capacidade para suportar os seus transportes, quer para os que têm impedimentos clínicos. Vai ser feita uma circular para que seja cumprido o despacho sobre o transporte de doentes, que vai pôr cobro a despesas de centenas de milhares de euros que os hospitais pagam em transportes.

Concorda com a criação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC)?

Penso que a junção do Centro Hospitalar de Coimbra e dos Hospitais da Universidade de Coimbra é uma resolução de bom senso em relação àquilo que a cidade necessita em cuidados de saúde. O número de habitantes que Coimbra tem e o filtro de hospitais que tem em seu redor – os hospitais da Figueira da Foz, Aveiro, Leiria, Viseu, Guarda, Covilhã, Castelo Branco – admitem a existência de um só hospital na cidade. Quanto à maneira como feito, aí é que posso questionar, pois podia ter sido mais bem planeado. Ao não existir um planeamento atempado criam-se situações de indefinição como as que se estão a viver atualmente. Mas tem que haver um consenso entre as partes e a criação do CHUC permitirá alguma racionalização de recursos. Por exemplo, em algumas especialidades não se justifica ter duas urgências abertas na cidade.

E o IPO deve ficar de fora desse novo centro hospitalar, como aconteceu?

Acho que é uma mais-valia para o país manterem o IPO. E existir uma junção, devíamos juntar-nos com os outros IPO, de Lisboa e do Porto, criando um grupo hospitalar. Aliás, já trabalhamos juntos em algumas questões, por exemplo analisamos e discutimos algumas compras. Se todos os países têm esta diferenciação no tratamento do cancro, não acabem com ela em Portugal.

Acha que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é sustentável?

Acho que é possível sustentar o SNS, desde que todos nós tenhamos uma visão não só do nosso umbigo, mas tenhamos, colegialmente, uma visão de que SNS queremos para o país, com uma racionalização dos custos na construção dos hospitais e na aquisição de equipamentos. Temos que fazer o aproveitamento daquilo que temos, racionalizando os investimentos, investindo nos locais certos para garantir as respostas aos doentes.

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