“O Estado transformou a justiça num bem de luxo”

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Foto Carlos Jorge Monteiro

Sem medo de chamar as coisas pelos seus nomes, Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, assume-se como um homem de princípios e causas pelas quais se bate sem tréguas. Apontando o dedo aos “maus da fita” e desafia o povo a dizer basta.

Quais são os problemas que a justiça portuguesa enfrenta atualmente?

São os problemas que enfrenta há algumas décadas. O principal problema para a sua própria credibilidade é a morosidade nas decisões. Isso resulta da irresponsabilidade, sobretudo, dos magistrados, e de algumas deficiências ao nível da organização judiciária. Mas resulta, sobretudo, do facto dos magistrados não terem prazos. O inquérito pode demorar anos, pode-se demorar anos a deduzir uma acusação, pode-se demorar anos a fazer um julgamento como já aconteceu. Depois de feito o julgamento, no processo civil, o juiz pode ficar durante anos sem fazer a sentença. Às vezes, demoram anos a decidir recursos nos tribunais superiores. Os prazos que a lei fixa para que os magistrados pratiquem os seus atos tem de ser cumpridos. Simplesmente, parece continuar a não haver vontade política para fazer isso. Depois, é a disparidade de decisões. Uma justiça nunca terá credibilidade quando os mesmos factos com as mesmas leis originam decisões diametralmente opostas. Outros problemas decorrem da desjudicialização. A justiça, para ser digna desse nome, tem que ser feita nos tribunais, não nos cartórios notariais, nas conservatórias de registo civil ou predial, em Julgados de Paz, em tribunais arbitrais assim chamados impropriamente. A justiça é uma dimensão da soberania do Estado e, portanto, ou é feita pelos órgãos que detêm essa soberania, os tribunais, ou será uma farsa.

Mas os problemas já se arrastam há décadas. Continua a ser uma questão de vontade política?

É, sobretudo, uma questão de vontade e de coragem política. E para se ter essa coragem, é preciso não ter telhados de vidro e os nossos políticos têm muitos telhados de vidro, infelizmente. E, por isso, o melhor que eles fazem é não dar nas vistas, é fazer as vontadinhas aos magistrados. E as coisas vão-se arrastando anos. Mas o povo português também tem culpa porque está sistematicamente a escolher os mesmo partidos que já deram provas de que os seus interesses são outros, que não os de servir a causa pública.

Também há problemas que decorrem da própria advocacia?

Sem dúvida. Desde logo, há um excesso de advogados que cria uma litigiosidade artificial. Há litígios que vão a tribunal e que noutros tempos não iriam. Se houvesse um número de profissionais adequado às necessidades sociais da advocacia, em que o advogado tivesse um rendimento que lhe permitisse fazer uma escolha criteriosa das causas, a realidade seria diferente. Esta massificação também contribui para a degradação da justiça.

Como travar a situação?

Tenho procurado travá-la através do combate contra a massificação da advocacia. Os advogados passaram de cinco ou seis mil há 20 anos para cerca de 30 mil, hoje. Não há clientes, nem trabalho para todos. Vemos os tribunais cheios de jovens à procura de serviços a nível do apoio judiciário, do acesso ao direito. Mas já vemos muitos advogados sem trabalho. O Estado deveria empenhar-se com a Ordem dos Advogados em criar condições para que a advocacia volte a ser uma profissão digna e respeitada na sociedade. Isso traria vantagens consideráveis para a boa administração da justiça.

Uma medida, no limite, poderia ser o fecho de faculdades de Direito?

O Estado já fechou três universidades por despacho do ministro. Nós não precisamos em Portugal de 10 ou 15 cursos de direito como os que existem. E já chegaram a existir 29. O que só acontece porque o Estado e a própria Ordem compactuaram com essa situação. O ensino de direito em Portugal tornou-se um excelente negócio, rende milhões, porque explora sem escrúpulos as ilusões de uma juventude sem esperança. A esmagadora maioria dos estudantes de direito, hoje, em Portugal vão ter saídas profissionais impróprias do curso. Não vão conseguir ser magistrados, advogados, notários, nem conservadores. Tirar o curso de direito é uma perda de tempo. Dá muito lucro às universidades, públicas e privadas. Umas porque cobram principescamente, através das prestações mensais que os alunos pagam. Outras, porque, além das propinas que representam hoje um elemento considerável no financiamento, são também financiadas pelo Estado de acordo com o número de alunos. Esta degradação do ensino do direito conduziu, por um lado, à degradação e massificação da advocacia e, por outro, à degradação da própria administração da justiça e dos próprios tribunais. Mas é apenas uma das causas.

Bolonha agravou a situação?

Muito mais. Hoje ninguém reprova nas universidades. Os estudantes são tratados como clientes porque pagam bem. Muitos, naturalmente, vão obter boa formação, mas a maioria não vai.Depois de Bolonha, facilitaram muito mais esse negócio às universidades. Em vez de tornarem o curso de direito mais rigoroso, um curso que forneça melhores qualificações jurídicas e prepare melhor os estudantes, não. E qualquer dia tira-se o curso de direito com um ano ou dois de frequência universitária. Bolonha é uma gigantesca fraude feita justamente para aumentar os rendimentos das universidades em que uma parte da verdadeira licenciatura de direito chama-se agora mestrado e é paga a um preço muito mais caro. E no passado, a própria ordem esteve calada e nunca denunciou a proliferação dos cursos de direito, nunca se pronunciou contra o abandalhamento, a mercantilização e degradação do ensino do direito.

E nunca tem a sensação de que está a pregar no deserto?

Eu não corro com objetivos políticos. Digo aquilo que é a verdade, e mais cedo ou mais tarde isso vai ser reconhecido. Os cursos de direito abandalharam-se em Portugal. Hoje, todos passam. As universidades tratam os estudantes como clientes e não como alunos. Comparar as dificuldades, mesmo na Universidade de Coimbra, que era uma das mais rigorosas, há trinta e tal anos com as de hoje não tem comparação nenhuma. Hoje entrega-se o diploma.

Porque é que as coisas em Portugal demoram tanto tempo a mudar?

Nós temos os políticos que temos, os magistrados que temos, os jornalistas que temos, enfim, porque somos o povo que somos. Somos um povo que é capaz das maiores exaltações, dos maiores atos de bravura, mas também tem um coração muito grande e muito mole. Não é exigente com aqueles que escolhe para os representar. Veja o que está a acontecer com este Governo. Este primeiro-ministro está a fazer exatamente aquilo que expressamente prometeu não fazer, antes das eleições. Isto é uma gigantesca fraude política, é um gigantesco engano. E o povo reage com esta bonomia.

Em junho desafiou os portugueses a não votar. O que teria acontecido se o povo tivesse seguido o seu exemplo?

Eu disse que não ia votar nas legislativas, e não fui. Porque estou farto de participar nesta farsa. As eleições transformaram-se numa farsa legitimadora de outra farsa e que é depois a governação e a atuação do Parlamento, em muitos aspetos. Se os portugueses tivesse feito isso muita coisa teria mudado. Se tivesse ido votar 10 ou 15 por cento dos portugueses, os políticos tinham que mudar de rumo e inverter a sua conduta porque ficavam enxovalhados internacionalmente.

O que gostava de mudar já no sistema judicial português?

Exigia já que os magistrados cumpram e pratiquem os atos judiciais a que são obrigados dentro dos prazos que a lei impõe. Acabar com os sindicatos nas magistraturas, sobretudo, nos juízes. Até como forma de pôr um ponto final às mentiras permanentes, como o facto de dizerem que não são aumentados há 15 ou 20 anos. Eles são aumentados todos os anos exatamente como o Presidente da República, como os membros do Governo ou do Parlamento e como todos os servidores do Estado. E os privilégios? Um juiz com três anos de serviço ganha mais do que um professor catedrático em dedicação exclusiva. Um juiz de primeira instância, de 15 anos de serviço, dum tribunal de círculo ganha mais do que um general das Forças Armadas. Têm subsídios, isentos de impostos que mais ninguém tem na sociedade portuguesa. Isto é intolerável. Depois, era preciso que os juízes passassem a respeitar os advogados. Há os que respeitam, mas muitos fazem gala em exibir desrespeito pelos advogados e até humilhar alguns mais frágeis, os mais novos, aqueles que estão menos preparados para se defenderem. Era necessário que o Estado acabasse com essas farsas de justiça a que chama meios alternativos. O principal objetivo do Estado não deve ser aliviar, nem descongestionar os tribunais, mas sim fazer com que estes respondam adequadamente e a tempo às necessidades sociais da justiça e da economia em matéria de justiça. Hoje, em Portugal, uma empresa não pode cobrar os seus créditos e há empresas que não se instalam por causa deste sistema judicial. Ou então, há empresas que procuram outros modos de justiça, compositória, autocompositiva entre elas e fogem dos tribunais. Em Portugal, os tribunais transformaram-se num paraíso para as pessoas com más intenções, para os caloteiros, para os criminosos.

E qual deve ser o papel dos advogados?

A Constituição diz que é um papel essencial à administração da justiça. Não haverá justiça se não houver advogados e se estes não puderem intervir livremente no processo dos tribunais. O que tem acontecido em Portugal é que, quer da parte do poder político, quer da parte do próprio poder judicial, há tentativas cada vez mais agressivas para desqualificar a intervenção dos advogados, para impedir que exerçam adequadamente a sua função no processo da administração da justiça, nomeadamente, no exercício do patrocínio forense.

A realidade portuguesa é muito diferente dos restantes países da comunidade?

Não é muito diferente. Nós somos um país mais atrasado que a generalidade dos países da antiga Europa Ocidental. Mas há países que entraram na União Europeia depois, mais atrasados do que nós e que já vão à nossa frente. Porque têm outros governantes, têm outras elites. Em Portugal, as nossas elites, lamentavelmente, pensam mais no seu bolso do que no interesse público. E nós temos assistido a um verdadeiro assalto aos recursos do Estado nos últimos 20 ou 30 anos. Fizeram-se fortunas fabulosas no exercício de funções públicas, vendeu-se património público ao desbarato como aconteceu com o edifício dos CTT em Coimbra, que proporcionou logo cinco milhões de lucro ao comprador. Compraram-se bens desnecessários ao Estado como submarinos. E para quê? Para proteger os barcos pesqueiros espanhóis ou os estrangeiros nas nossas águas?

É por tudo isso que considera que Portugal não é um país com futuro para os jovens?

Não é mesmo. Eu saí de Portugal com meio ano de idade, em 1951, ao colo dos meus pais, ambos com 26 anos. E foram embora porque Portugal não era futuro para a juventude. Hoje, a minha filha também já se foi embora com as minha netas para outro país. Não tem futuro um país que obriga os seus jovens a ir embora. Portugal vai acabar como país, como Estado e será uma região da Europa.

Não está a ser dramático?

Se alguém tiver uma visão mais positiva, chame-o para debater comigo. Andámos durante anos a fazer obras com dinheiro emprestado, a fazer dívidas e a adiar tudo. Há dívidas que só serão pagas com os impostos de pessoas que ainda não nasceram. Já tivemos uma crise económica em 1983, mas Portugal não estava sobreendividado como está hoje, nem as pessoas. Chegou uma altura em que não havendo capacidade de sobreviver com os recursos próprios se vai ficar na dependência alheia. Isso é o fim da independência nacional. E Portugal, que resistiu ao longo dos séculos às piores adversidades, não se preparou para vencer o principal inimigo da atualidade que é o dinheiro.

Voltando à justiça. Que espera do congresso dos advogados a decorrer na Figueira?

Espero que discuta os grandes problemas da justiça. Apesar de haver sinais de que alguns dos meus colegas querem ir para o congresso fazer ajustes de contas ou subverter os resultados de 2010, espero que os delegados tenham o bom senso de querer discutir os problemas da justiça e que não queiram através do congresso condicionar a ação dos órgãos eleitos. Que discutam com toda a liberdade, sem constrangimentos e que no final se apresentem conclusões que possam ser dignas da advocacia portuguesa e que possam ser remetidas a quem de direito para que sejam tomadas as medidas adequadas.

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