(Dis)traição

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Salvador Massano Cardoso

Procuro, às vezes com certo afã, outras não, sou mais comedido, a espontaneidade e a generosidade do povo, vendo-o, sentindo-o e escutando-o.

A sala de repasto estava compostinha, algumas pessoas eram-me desconhecidas, mas os habituais estavam presentes, ocupando os seus lugares aparentemente cativos, uma espécie de código a respeitar aos domingos. A televisão debitava notícias atrás de notícias, sem que alguém se incomodasse com o que quer que fosse que estava sair do aparelho, a não ser com o conduto, o pão, o tinto, algumas referências ao trabalho do campo, ao morto do dia, misturados com o recolher minucioso dos restos alimentares para enfiar em sacos de plástico, porque as galinhas lá do sítio sabem que hoje é domingo, ou terem de escutar o comentário em alta voz da diabética ao atacar uma generosa “malga” de arroz doce, “eu só sou gulosa aos domingos”.

Entretanto fala o Alberto João. Interrompe-se tudo, garfadas, goladas, conversas, o recolher dos restos e até a voz tonitruante da senhora com diabetes. Após uns breves segundos de silêncio, começo a ouvir alguns comentários à maneira, “com ele ninguém se mete”, “buracos também nós temos”, “eles que paguem do bolso deles, nós pagamos do nosso”. Daqui passou-se para os pagamentos, “agora temos de pagar mais a eletricidade a partir de hoje”, “é da maneira que não vou acender a televisão”, “pois é, a partir de janeiro vão cortar a televisão, é preciso uma máquina nova para a ver”, “eu não vou gastar dinheiro, trinta ou quarenta contos para a ver, era o que mais faltava”. “Pois eu, vou comprar”.

Disse uma velhota que, sozinha, estava a atacar com uma avidez pouco habitual os restos da carne que teimosamente não queria despegar do osso, “a televisão é a minha distraição”, e, para que todos ouvissem, limpou os beiços, verteu metade do copo de vinho na boca para empurrar a carne, repetindo para os que estavam atrás, “é verdade, é a minha única distraição e pago o que for preciso”.

(Dis)traição! Uma palavra nova que eu registei, não com o sentido que a senhora queria explicitar, distração, obviamente, mas que eu ajustei à realidade do dia-a-dia. Todos conhecem o significado da palavra traição, mas se juntarmos o prefixo “dis”, que “exprime noção de perturbação ou dificuldade”, então, podemos concluir que andamos mesmo “(dis)traídos”.

Andam a trair-nos de uma forma despudorada, mas querem convencer-nos de que não, que são pessoas sérias, honestas, que só querem o nosso bem, mas no fundo traem-nos, e como não querem dar a entender que nos atraiçoam, entretêm-se com distrações que, na maioria das vezes, não são mais do que (dis)traições. A melhor forma de as transmitir é através da televisão.

Afinal, a observação da velhota, segundo a qual não pode passar sem a televisão, porque é a sua “distraição”, é bem conhecida dos (dis)traidores, sejam eles quem for, políticos, comentadores, comediantes e muitos outros que devem “vender”, mas não a pataco, o espaço que lhes é destinado.

Espero que os tenha distraído, no verdadeiro e genuíno sentido do termo…

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