“Toma!”

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Massano Cardoso

Andamos a ser rotulados de “lixo” por parte das agências de rating. Não é só o país, mas também algumas empresas, municípios e bancos.

A palavra lixo incomoda qualquer um, chega a ser depreciativa e é mesmo insultuosa. Alguns ficaram de tal modo eriçados que se lembraram de retomar o velho “Zé Povinho” a fazer manguito à Moody´s. Quem se lembrou desta iniciativa deve ter-se esquecido das razões que levaram à sua criação. Se há alguém a merecer “Toma!” somos nós que nunca mais temos juízo. Não é só na dívida pública, na governação ou no consumismo doentio é também nas pequeninas coisas do dia-a-dia.

Tinha entrado na adolescência quando ouvi falar pela primeira vez de Aristides de Sousa Mendes. O meu avô, republicano, que nunca gostou de Salazar, mais tarde soube as razões, falou-me do homem que salvou milhares de judeus durante a guerra. Quando passei para o sexto ano tive de ir estudar para o concelho vizinho, Carregal do Sal, porque em Santa Comba não havia os dois últimos anos do ensino liceal. Alguns dos meus novos amigos eram de Cabanas de Viriato e, graças a eles, acabei por conhecer a casa do cônsul português. Fascinou-me a sua arquitetura e pus-me a imaginar como deveria ter sido a vida naqueles salões. Curioso, comecei a querer conhecer um pouco mais da vida de um homem, então, praticamente desconhecido, demasiado para ser verdade, mas tinha razão de ser, afinal, o velho responsável pelo infortúnio do herói ainda estava vivo e mandava.

Vivi durante muitos anos na estação de caminhos-de-ferro de Santa Comba Dão e, diariamente, passava em frente da casa do então Presidente do Conselho, que não distava mais de uma centena de metros da minha. A casa, bem arranjada, pintada de branco, com madeiras cuidadas de cor verde, era procurada amiúde, sobretudo ao entardecer ou à noite, por várias pessoas que tocavam a uma sineta da parte lateral. Gente humilde e menos humilde à procura de ajuda por parte da irmã, sempre disponível a ouvir as petições. Resta saber se seriam atendidas. Tive sempre sérias dúvidas.

O tempo passa e as marcas da velhice fazem estragos no corpo, na alma e nas casas. Quanto ao corpo e à alma não há nada a fazer, uma fatalidade que nem as medidas regenerativas publicitadas conseguem impedir, afinal não fazem mais do que adiar o reconhecimento da verdade. Quanto às casas as coisas são diferentes, podem ser rejuvenescidas. Verifico que algumas gozam de certos privilégios, e ainda bem, ao adquirirem o brilho e a beleza de outrora, mantendo o seu significado e história no presente. Não é o caso da casa do Passal, em Cabanas de Viriato, nem a de Salazar, no Vimieiro. Degradam-se assustadoramente a um ritmo exponencial de ano para ano, até parece que desejam cair no esquecimento absoluto, dissolvendo-se ou transformando-se em ruínas.

Preservar o património é garantir palcos da vida onde podemos ensinar e aprender com facilidade as grandezas e as misérias de pessoas e do povo que as pariu. No caso de Aristides de Sousa Mendes foi criada uma fundação que tinha (?) como alvo, entre outros, a recuperação da casa para um espaço museológico dedicado ao Holocausto, e, no tocante à casa do Salazar, também foi proposto a criação de um museu ou centro de estudos relativo ao Estado Novo. Ambas as iniciativas iriam permitir que pudéssemos, in loco, beber as virtudes, as grandezas, as misérias e as tragédias de um povo. É estranho que as duas casas, símbolos de duas figuras de relevo, estejam entrelaçadas e a caminho do mesmo destino: o lixo. Não tenho dúvidas de que em breve nada irá restar. Considero uma injustiça o não respeito pela memória de um “justo”, mas, também, por aquele que, embora tenha sido injusto com o primeiro, não deixará de fazer parte da nossa história. O “Zé Povinho” pode fazer manguitos a muita gente, a ministros, aos que pedem fiado, à Moody´s, ao vizinho do lado e a outros, mas fazer manguito a si próprio…

 

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