“Os portugueses”

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João Boavida

Já aqui fiz referência ao livro a propósito de um episódio na Câmara Municipal de Coimbra, ou mais uma triste travagem no Acelerador de Empresas – essa ideia excelente para uma das melhores coisas de Coimbra, que é o Instituto Pedro Nunes.

Mas o livro “Os Portugueses”, de Barry Hatton, (Lisboa, Clube de Autor, 2011), que deu a referência, merece uma crónica. O Autor é correspondente da imprensa inglesa, em Portugal, há vinte e cinco anos. Aqui casou e lhe nasceram três filhos e aqui tem passado «alguns dos melhores anos da vida», como diz. A circunstância de estar bem informado sobre tudo o que aconteceu desde o 25 de Abril, de ter acesso a fontes privilegiadas, de ter estudado a nossa história e de ter lido os nossos filósofos, escritores, poetas, sociólogos, dá-lhe uma perspectiva ao mesmo tempo rica, objectiva e amigável, que o torna um livro precioso para nós. E para todos os estrangeiros que não se satisfaçam com os lugares comuns do costume ou a ignorância com que somos “esquecidos” assim que se passa Vilar Formoso. A seus olhos o nosso povo parece ter um enigma particular, que seduz e intriga. Como, de resto, têm sentido outros autores estrangeiros.

O tempo de vida que já leva por cá, o facto de nos ter estudado e observado, e de gostar de nós, faz do livro uma mistura de crítica e de complacência, de compreensão e de objectividade, de doçura e de acidez, que a todos nos faria muito bem ler, se isso fosse possível. Como é escrito para os ingleses, a partir de uma perspectiva simultaneamente exterior e interior, tem um sabor muito particular. Conhece a nossa história, adora a nossa gastronomia, admira as nossas paisagens e a sua variedade, ficou cativado pelo nosso gosto pela convivência, pela afabilidade, capacidade de adaptação e de inventiva. Mas é muito crítico, obviamente, em relação à nossa burocracia, à maneira como as nossas instituições são em geral ronceiras, ineficazes e permeáveis à corrupção e ao desleixo. Entristece-se com a nossa indisciplina, o gosto de complicar, o modo como encolhemos os ombros à ineficácia de muitos dos nossos políticos, à pouca capacidade de reivindicar e de exigir qualidade nos serviços e nas instituições, ao modo como muitos agentes do sistema judiciário passam por cima do segredo de justiça, e da própria justiça, ou arrastam os processos até prescreverem, ou como os responsáveis são capazes de diluir as responsabilidades, mesmo quando são evidentes e assassinas, como no desastre da Ponte de Entre-os-Rios, etc.

A partir das desgraças que nos aconteceram desde o século XVI (Inquisição, expulsão dos judeus, Alcácer Quibir, domínio espanhol, Terramoto, Invasões Francesas, Guerras Peninsulares, Guerra Civil, Ultimato, Ditadura, Guerra Colonial) tenta perceber como – mistério para muitos estrangeiros – desde os gloriosos séculos XV e XVI, que ele valoriza na sua extraordinária medida, e como factos espantosos que foram, como, desde então, não temos deixado de regredir. Falando da actualidade do Zé-Povinho, de Rafael Bordalo Pinheiro, tem esta magnífica síntese: Ele «incarna os impulsos portugueses, por vezes difíceis de reconciliar (…). É como se qualquer observação do carácter português tivesse que ser caracterizada pelo seus oposto. São amistosos, mas também irascíveis, deferentes, mas indómitos, apáticos e humildes, duros e ousados, compassivos, mas irados, submissos e belicosos, sempre à espera que a sorte lhes sorria, boa companhia, conciliadores e diplomáticos, bem como efusivos e espontâneos, dados a perder as estribeiras, mas eminentemente sensatos, com a tristeza na alma, mas a jovialidade na sua natureza». Ora digam lá se não é mesmo assim? O livro é uma preciosidade.

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