“O desemprego de ideias é o pior mal do nosso país”

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Foto Gonçalo Manuel Martins

Músico, pedagogo e interventor cívico, Manuel Pires da Rocha tem sido um lutador incansável por uma escola onde a aprendizagem seja integral. Agora, finalmente nas novas e dignas instalações do Conservatório de Música de Coimbra, de que é diretor e onde sempre ensinou, participa na concretização de um projeto novo e decisivo, em articulação com a Escola Secundária Quinta das Flores. Porque, como diz, se conseguirmos fazer uma escola onde sejam dadas às crianças as diversas ferramentas e também a artística, “estamos a contribuir para uma sociedade muito mais rica”.

A história atribulada do Conservatório de Música de Coimbra parece ter chegado ao fim, agora, 25 anos depois, quase a iniciar o segundo ano letivo nas novas instalações?

Estas instalações são belíssimas instalações para o ensino e a prática da música. Aqui foi possível criar várias coisas. O Conservatório de Música de Coimbra, em si, ganhou condições que nunca teve, que serão muito raras a nível nacional e que são muito boas a nível internacional. Condições para as aulas, condições para o lazer das crianças, condições para o trabalho dos professores, condições para que os pais possam estar com os seus filhos. Temos todo o tipo de condições. Por outro lado, temos a união de facto com a Escola Secundária Quinta das Flores. E essa é uma relação em crescimento, mas que está a correr bem.

Está, então, a resultar o ensino integrado com a Escola Quinta das Flores?

Está. E não digo isto para ser formalmente simpático. Digo isto porque, de facto, está a correr bem. Nós encontramos da parte da Escola Quinta das Flores o mesmo acolhimento que tivemos logo desde o início, quando a Escola José Falcão recusou o alojamento do conservatório. A Quinta das Flores mostrou-se com vontade de ter o conservatório e tudo tem sido feito pela própria comunidade estudantil, educativa, pelos professores, pelo diretor da escola, de modo a poder articular procedimentos para que possamos funcionar como uma só escola. Para que não haja nestas crianças a sensação de que estão em duas escolas diferentes, de costas viradas uma para a outra. Este ano já fizemos de uma forma não programada, às vezes um pouco improvisado ainda, coisas como espetáculos, uma ópera para crianças que contou com a participação dos alunos e professores de artes plásticas, a Semana Francófona suscitou a nossa colaboração para um espetáculo em que houve canções de compositores franceses.

Concretizar, de facto, a integração das duas escolas. É disso que se trata?

Exato. Concretizar em objetos. Sejam objetos materiais ou imateriais. E essa concretização tem acontecido. Para além do mais, tem havido uma partilha simpática ao nível das instalações que pertencem a ambas as escolas. Por outro lado, dá-me ideia que a entrada dos miúdos da música acabou por, de alguma forma, despenalizar esse mundo à parte que é o mundo da música. A partilha e a convivência veio mostrar que as nossas crianças são crianças exatamente iguais às outras, só que estudam um instrumento musical. O ambiente que se gerou aqui, que está em construção, é um ambiente muito interessante para se viver. E é para mim um privilégio poder assistir e, de alguma forma, estar envolvido nesta aventura.

E esta tem sido mesmo uma aventura?

Sem dúvida. E é também a prova de que as coisas boas fazem-se trabalhando nelas. Porque o desemprego de ideias é o pior mal do nosso país. Portanto, empregando ideias e empregando vontades – e dando-lhes um salário – é possível fazer com que essas coisas consigam surgir. Por outro lado, a cultura da Escola Quinta das Flores, que é uma cultura de escola estabelecida há muitos anos, acaba por impregnar outra escola – o Conservatório de Música de Coimbra – que viveu muito tempo a dar avulsamente aulas de música. E essa “avulsidade” – a palavra não existe mas fica aqui bem – acaba por ser completamente anulada perante a necessidade de nós termos respostas educativas globais.

O que é que o conservatório, toda a sua comunidade educativa, ganhou com esta nova vivência e a partilha que ela implica?

Na prática, para já, ganharam mais os alunos do conservatório do que os alunos da Quinta das Flores. E porquê? Porque os alunos do conservatório passaram a poder, no mesmo e sem perdas de tempo, ter todas as matérias que fazem parte do seu plano de estudos. Os alunos da Quinta das Flores vão ganhar, porque nós vamos ter de lhes devolver qualquer coisa que seja o conhecimento e a partilha do mundo da música, em termos da compreensão desse fenómeno. Porque o problema do nosso país continua a ser um problema cultural. A questão do português, por exemplo, não me parece que seja um problema de somar ou diminuir horas letivas. O problema do português é um problema de viver a língua portuguesa enquanto língua viva e ferramenta viva.

O que vai muito para lá das aulas de língua portuguesa, embora estas sejam fundamentais?

Vai. Vai muito para lá. E isso não implica descurar o ensino das técnicas da língua. Do mesmo modo com a música. Uma coisa é nós sabermos que a música existe, outra coisa é nós podermos entrar na música e percebermos o fenómeno musical. Na língua acontece exatamente a mesma coisa. Também aqui, nesta tarefa, as duas escolas têm de se interpenetrar e conseguir oferecer a todos os alunos as mesmas coisas.

Numa parceria destas – com uma escola de ensino geral e uma escola de artes – fica mais fácil fazer a transformação necessária ao ensino em Portugal?

Fica mais fácil e, sobretudo, fica mais interessante. Para já o que ganhámos todos foi uma carga de trabalhos no bom sentido da palavra. Isto é, nós temos aqui um conjunto de ferramentas que, se as soubermos utilizar, podem ir ao encontro dos nossos sonhos educativos, às necessidades educativas das crianças, mas também às suas ambições. Nós vamos agora iniciar o ano letivo com um novo curso de dança – uma turma do quinto ano de dança e uma turma do quinto ano de música – que vai permitir a crianças que vêm da escola “primária”, com todo um conjunto de expectativas e uma mente aberta, uma educação global e de uma forma mais cómoda.

E esta é uma experiência completamente nova. Para além da novidade do ensino oficial da dança em Coimbra?

E esta será a primeira escola que, com uma gestão comum, pode ter num mesmo território o ensino das artes plásticas – muito desenvolvido na Quinta das Flores –, da música, da dança e todas as restantes vias de ensino. E nada disto é incompatível. Ou seja, não me parece que numa escola de artes não possam estudar crianças para serem arquitetos ou outra profissão qualquer.

Seria bom conseguir dar às crianças a possibilidade de contactarem com todas as áreas, nomeadamente as artes?

Exatamente. Se nós conseguirmos contribuir para criar uma escola onde sejam dadas as diversas ferramentas e também a artística para que as crianças possam fazer as suas escolhas, estamos a contribuir para uma sociedade muito mais rica. E esse é um privilégio nosso. E, mesmo a nível nacional, é um privilégio um pouco particular. Porque aqui juntaram-se duas escolas, com as suas características, sem as perderem, antes a potenciarem essas características mutuamente. Este projeto tem, portanto, de continuar a ser concretizado com estas características particulares.

E poderá partir daqui uma espécie de “contágio” para o sistema de ensino?

Eu penso que sim. Embora se coloque, desde logo, a questão dos meios muito escassos que existem para o ensino da música. Mas as escolas já vão abrindo diversas pistas, até para a sua própria sobrevivência. Nós estamos à saída do paradigma da escola normal para a escola especial, a de saídas profissionalizantes e outras, naquele que é um ponto de mutação muito grande. No que esta escola pode ser muito importante e até contagiante para as outras é mostrar que é possível, é necessário e é útil ter diversas valências para que elas se possam “infetar” umas às outras. E nesse aspeto esta escola pode ser um exemplo: se nós conseguirmos mostrar que essa interligação generalizada entre as diversas áreas é benéfica, faremos uma oferta de formação apetecível para a comunidade. É evidente que nem todas as crianças terão jeito para a música, mas outras terão jeito para as artes plásticas, ou para a fotografia, ou para o teatro, área que, sendo das artes mais antigas, não está minimamente regulamentada em termos de ensino em Portugal.

Interessa, portanto, oferecer caminhos diversos às crianças?

Deveria passar por ai, com o ensino a oferecer diversos caminhos, que têm de ser estudados e têm de ser assumidos. E não me parece que a solução esteja no ensino profissionalizante. Parece-me que é mais através do ensino de proposta de formação, que depois irá complementar-se noutros tipos de formação. Nós sabemos que hoje as escolas têm muito trabalho, mas há inúmeras escolas com vontade de fazerem coisas diferentes. Há duas legislaturas, houve um conjunto muito grande de escolas que fizeram uma proposta de intervenção cultural que, infelizmente, não foi aceite pelo Ministério da Educação. E foi pena, porque seria possível ver o potencial das escolas relativamente à produção cultural. E nós não podemos continuar a ter a sensação de que a cultura é um cachucho a enfeitar o dedo, a cultura não é para os meninos ficarem mais ornamentados. A cultura é, deve ser, uma coisa estruturante. Se alguém for à Igreja de Santa Cruz, olhar para aquelas paredes e lhes souber dar um significado, isso é estruturante.

É possível que esse conjunto de escolas, hoje, consiga explicar esse propósito a esta estrutura ministerial?

Sim. Eu quero acreditar que sim. Nós algum dia vamos ter de sair do discurso da subordinação ao défice, para entrarmos no discurso da subordinação à luta contra o défice intelectual. Todas as nações em crise só conseguem sair dela se investirem na formação, em inteligência, em proposta. E este ensino, que é um ensino caro, é um ensino essencial. Porque se não for assim, vamos fazer o quê? Regressar a Salazar, aprender a fazer umas contas e a escrever o nome. Esse já não é o nosso tempo e eu espero que tenha ficado completamente enterrado. O que está a gerar-se é uma nova escola que tem de ser muito construída pela tutela, pelos corpos docentes, pelos pais e pelas crianças.

Há alguma perceção do entendimento dos pais relativamente a esta escola?

Eu vou generalizar, mas os pais tinham relativamente ao conservatório, há 10 anos, uma expectativa de ornamento dos seus filhos. Neste momento já têm uma expectativa estruturante. Os pais querem que a eficácia ao nível da educação musical dos seus filhos seja de tal modo que eles possam escolher esta profissão. E a sua exigência relativamente à escola vai nesse sentido.

O crescimento do conservatório em qualidade serviu também para elevar a fasquia ao nível da exigência?

Sem dúvida. E isso até se sente ao nível da exigência de honestidade na entrada para o conservatório. Aquela velha história de que a cunha – que continua a chegar – é que manda em tudo, já não tem a mesma expressão. A escola foi obrigada a gerar um conjunto de instrumentos e evidências capazes de mostrar às pessoas quais são as formas de seleção das crianças. E estas formas de seleção têm de ser levadas cada vez mais longe para que não seja perdida nenhuma criança que tenha, de facto, capacidade. O ideal seria existir uma formação musical básica bem estruturada e estendida a todas as escolas, que não existe em Portugal. Porque não é com as AEC que se resolve o problema, e até pode ser, mas numa perspetiva de formação dos professores que leva às crianças a qualidade de ensino necessária. O que tem acontecido é que a precarização da educação musical, como do ensino das línguas, leva a uma desvalorização desse patamar do ensino.

E o ensino da música nos primeiros anos de escolaridade tem sido e é, de facto, uma coisa…

…degradante! Qualquer mortal devidamente esclarecido odiará a flauta. A flauta representa hoje a democratização pelo mais negativo que a democratização tem. É como se todos tivéssemos uma camisa igual e fossemos obrigados a usá-la. Nós temos em Portugal um problema de estruturação do ensino da música e das artes em geral. Não temos ao nível das artes plásticas nenhum tipo de ensino em Portugal, ao nível do teatro não temos, de todo, ensino estruturado, ao nível da música temos um ensino que depende exclusivamente do professor e nenhum ensino pode depender do professor. Depende do talento do professor e nenhum sistema de ensino pode depender de talentos, pode e deve ir buscar talentos para lhe acrescentar encanto. Porque nós sabemos que há bons professores e maus professores como há bons médicos e maus médicos, como há bom e mau em qualquer profissão. E, assim, nós não podemos pretender que cheguem ao conservatório crianças com vontade de fazer isto se elas não souberem previamente que querem fazer isto.

O que leva a que haja crianças com potencial que podem perder-se para a música?

Basta chegarem aqui e serem tímidos que já não conseguem fazer os exercícios. E isto devia ser resolvido pelo próprio sistema educativo, que devia dar a possibilidade a cada crianças de se expressar a nível artístico. Mas como isto não vai acontecer nos próximos anos, nós vamos ter de resolver esta questão. Fazer, por exemplo, com que haja um período maior de exposição das crianças à proposta educativa. Ou seja, nós não vamos poder fazer testes num dia, vamos ter de fazê-los em seis meses, para que as crianças possam perceber o que querem e possam decidir se querem ou não ficar na escola.

Já este ano letivo, o conservatório passa a oferecer também a dança?

Exatamente. Temos finalmente condições para integrar a dança, uma arte fantástica, de que existe, em Portugal em geral e em Coimbra em particular, uma grande oferta particular, mas que agora nós assumimos enquanto oferta do ensino público. Nós tivemos aqui um workshop de dança com as 21 crianças inscritas e que vão formar uma turma de dança em 2011/2012. E o mais interessante é que se percebeu, desde logo, quais as crianças que tinham a cabeça estruturada para o coletivo e as que não tinham. De que modo se entreajudavam na realização das tarefas. De facto, ali se percebeu que a arte pode ser uma atividade estruturante do pensamento. A arte só vale a pena se for uma atividade estruturante do pensamento e com capacidade para gerar a criatividade.

E isso faz toda a diferença?

Exatamente. E estruturação aqui não significa padronização. Significa que cada pessoa tenha de saber que tem ao lado outra pessoa e tem de saber como agir com ela. E eu dou um exemplo: na inauguração do conservatório houve uma cerimónia, discursos. E tivemos uma orquestra com 90 jovens, entre os 13 e os 17 anos, no palco durante muito tempo e quietos. E não foi preciso explicar-lhes que é assim, porque eles sabiam que o tempo deles viria e que fariam a sua parte. Pode ser quase nada, mas nota-se uma estruturação naqueles jovens, que faz com que eles sejam diferentes dos outros. E não são diferentes nas oportunidades que o dinheiro pode dar, porque, nos sopros particularmente, há muitas crianças das vilas e lugares à volta de Coimbra e que, muitas vezes, não têm grandes capacidades financeiras. Em 25 anos, nós tivemos no conservatório um acidentes com uma criança (que andava a correr, caiu e partiu um dente). E um acidente em 25 anos significa que esta é uma escola que não é igual às outras.

Neste momento o conservatório, para além de oferecer novas valências, como a dança, abre-se à comunidade para algumas outras respostas que são necessárias a nível educativo?

Nós consideramos que o conservatório pode dar respostas de diversa natureza. E já está a dá-las. Para além daquelas que são a sua missão – dar aulas de música e, agora, também, aulas de dança – nós temos já dois cursos profissionais a entrarem no seu segundo ano (instrumentos de sopro e percussão e teclas e cordas) e este ano abrimos um terceiro, de jazz. Curiosamente a resposta dada relativamente a este curso, foi superior à anterior. Porque o jazz é uma nova linguagem, suscita o interesse de muitos jovens, mas também tivemos candidatos com maiores competências do que as que seria de esperar. Por outro lado, tivemos um curso livre de jazz, para pessoas de todas as idades, com 46 alunos, que foi muito interessante. E tivemos um curso de crianças com trissomia 21 e outras necessidades educativas especiais que foi muito interessante também e que nós queremos desenvolver para além da mera oferta privada. Queremos desenvolver para o âmbito da obrigação da sociedade em cuidas destas questões.

E a questão das crianças com necessidades educativas especiais é uma questão fundamental?

É fundamental. E parece-me que ter estas crianças a trabalhar com professores devidamente formados leva a que possam ser enriquecidas enquanto cidadãos. Por outro lado, isto permite gerar junto das suas famílias um sentimento de integração e uma integração efetiva que é muito importante e a que nós somos chamados nas nossas obrigações de cidadania.

Essa experiência – com a associação Olhar21 e a Escola Alice Gouveia – é para continuar?

É para continuar, para desenvolver e para melhorar. Deu já muitos frutos e queremos que dê mais ainda.

Este é o tipo de iniciativa que agora o conservatório tem condições para desenvolver?

Sem dúvida. Agora há espaço para tudo, para todas as ambições que sempre tivemos e que nos estavam vedadas.

Há ainda um auditório magnífico?

Um espaço que esteve em promoção durante todo este ano, de uma forma muito aberta e muito ativa, mas que tem de ser organizado de uma outra forma. O auditório não pode ser um salão de festas, tem de ser uma ferramenta da atividade escolar, sem dúvida, mas do ponto de vista da vida cultural em Coimbra, tem de ser um instrumento bem programado. Neste momento estão reunidas as condições para a oficialização da Liga de Amigos do Conservatório de Música de Coimbra, entidade que terá um papel de promoção fundamental, fazendo com que o auditório seja uma ferramenta nas mãos da cidade, para que a cidade possa ter acesso a um conjunto de realizações artísticas que se quer programado.

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