Nem de borla me aceitam para fazer estágio (com música)

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Música dos Deolinda – “Que parva que sou”

 

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Só à terceira tentativa é que Ruben Valente, 26 anos, conseguiu encontrar um estágio… não remunerado. Até a falta de material de escritório serviu justificação para não aceitar o recém-licenciado em Geografia Humana, que nunca pediu salário nem fez quaisquer exigências.

O jovem terminou a licenciatura em junho e sabia que dificilmente conseguiria um emprego antes de ter experiência de trabalho no curriculum. Através do Gabinete de Estágios da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) candidatou-se a um estágio não remunerado na Câmara Municipal de Montemor-o-Velho. “Disseram-me que, à partida, não haveria qualquer problema em aceitarem-me”, recorda. Mas a decisão final tardava em aparecer e – depois de um mês de espera e muitos telefonemas por intermédio do Gabinete da FLUC – a autarquia informou que não sabia “como enquadrar”o estagiário nos seus serviços, pelo que teria de recusar o pedido.

Segunda tentativa: Câmara de Soure. Mais uma vez, Ruben Valente recebeu um “em princípio não haverá qualquer problema” como resposta. Mas decidiu investir desde cedo no contacto direto com a autarquia, para garantir que o pedido não ficava esquecido. “A primeira vez que fui à Câmara nem conseguiam encontrar o meu processo”, relata. Mais uma vez, foi preciso esperar quase um mês para receber uma resposta definitiva. “Acabaram por recusar, dizendo que tinham muitos estagiários e não tinham cadeiras para sentar tanta gente”, conta o geógrafo.

A justificação pode parecer descabida, mas não é tão original quanto se possa pensar. Inês Santos, do Gabinete de Estágios da FLUC, revela que muitos estagiários desenvolvem projetos em casa por falta de espaço na empresa onde estagiam. E é muito comum não conseguir colocar os estagiários à primeira ou segunda tentativa. “Todos os cursos da faculdade enfrentam dificuldades, mas os alunos de Geografia são os que mais se queixam”, revela.

Ruben Valente acabou por desistir das câmaras municipais e contactou a empresa de um ex-professor de faculdade. À terceira tentativa, conseguiu finalmente ser admitido para um estágio de três meses, que termina em março. O futuro depois de estágio é, ainda, uma incógnita. “Quando o Gabinete foi criado, há cinco anos, ainda havia alunos que conseguiam trabalho na empresa onde estagiavam. Agora isso já não tem acontecido”, conta Inês Santos.

De chinelos, a partir de casa

Outro caso paradigmático é o de Jorge (nome fictício), que trabalha num contact center e que – como ele próprio gosta de dizer –, passou “por quase todos os bordéis e esgotos” da região, “a mendigar emprego”.

Jorge fez um curso numa escola profissional. Um pouco ao acaso, estudou para Animador Social. Mas, como o acaso “passa a vida a pregar rasteiras”, fez um primeiro estágio numa instituição particular de solidariedade social que também tem ligações à área da comunicação. Como tinha jeito para a internet, ofereceu-se para atualizar e modernizar o sítio online. “Foi meu maior erro”, admite. Nem lhe arranjaram contrato nem tão-pouco lhe pagaram, nos primeiros dois meses. Mais tarde, perdeu, mesmo, o espaço para trabalhar e começou a ficar em casa.

“Ao princípio, fazia aquilo em sítios diferentes, para evitar aquela coisa de me levantar e ficar de pijama e chinelos a comer e a descansar em cima do computador”. Depressa se fartou, até porque os pagamentos nada tinham de regulares.

Desde meados de 2009 que estabilizou. Mas não conseguiu o contrato, a não ser com uma firma de temporários. Diz que não é político, mas não disfarça uma certa raiva a nascer-lhe nos dentes.

“Eu é que não sou parva”

Uma canção transformou-se num hino. Ana Bacalhau, a voz dos Deolinda, não é parva. E parvos não são os milhares de jovens que se reveem na denúncia cantada.

São rapazes e raparigas que têm, na sua maioria, formação diferenciada e muitos cursos mais para acrescentar. Gente que, a princípio, oscila entre estágios não remunerados, alguns alcançados a custo, e o desespero de conseguir o primeiro contrato. Gente que vive obcecada com as páginas de anúncios dos jornais e com os sítios de ofertas de emprego da internet.

São histórias de jovens desta geração deserdada que aqui se contam. Alguns são previsíveis. Outros inesperados. Outros, ainda, são absolutamente comuns, de tanto se repetirem. Todos são reveladores do estado de profunda depressão que afeta, transversalmente, quem não “descola” da situação de precário.

Há sinais contraditórios. De um lado, a aposta em apertar o controlo aos recibos verdes. Do outro, a contração da economia. Tudo isto faz com que as empresas se retraiam. E, portanto, que floresçam os esquemas de trabalho temporário, de falsos prestadores de serviços, de roulement de empregadores, dentro do mesmo grupo. E ainda os truques, bem mais rasteiros, de firmas fictícias e outras burlas.

“Que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar”, canta Ana Bacalhau…

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