Juros, spreads e hipotecas

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Desde há meses que, a cada instante, se abate sobre cada família portuguesa uma pesada angústia. Acompanhar as notícias do dia, de tão sombrias, está a tornar-se um exercício penoso. Desfilam perante nós, com enorme destaque, inquietantes figuras: recessão e crise, dívida e austeridade, BCE e FMI. Uns têm cara própria, como J. Claude Trichet, D. Strauss-Kahn ou Wolfgang Schaeuble. Outros não, como as agências de “rating” ou os “nervosos mercados”. A linguagem de todos eles é sofisticada e exprime-se em spreads, dumpings, défices, obrigações, juros, bolhas, que compõem o léxico da nova moda.

Estranho novo mundo este que os portugueses passaram a habitar. Distraídos, muitos deles não tinham dado conta cabal que já aqui se encontravam há muito. Viviam outros cenários, falavam outras linguagens, viam e (re)conheciam outras caras e entidades. O seu pensamento acomodara-se à dimensão do país. Daí a inquietude perante a nova realidade que já se anunciara mas ainda assim surpreende ao chegar. Face à vertigem provocada por tal realidade e a imperiosa necessidade de a conhecer e lhe dar sentido, os portugueses registam, atónitos, o desgaste abissal sofrido pelos seus mais prosaicos quadros de referência.

O destaque concedido à nova condição de vida, às suas novas linguagens e personagens, oculta aquele outro Portugal do aconchego. E as incógnitas avolumam-se acerca do futuro dessa outra realidade, agora sujeita a outros ditames. Entre tantos outros temas e problemas – do (des)emprego, à educação, da justiça à saúde, dos salários ao futuro hipotecado – quero falar apenas de um deles e interrogar sobre o seu futuro incerto.

É grande a incerteza que paira e se agrava sobre a recessão que as cidades portuguesas enfrentam, em particular as pequenas cidades do interior. A sua retracção deve-se, nuns casos, à desindustrialização do tecido produtivo, noutros à desruralização dos campos, noutros ainda à perda das suas funções administrativas e à sempre renovada sangria migratória. A sua deprimida demografia revela-se num acentuado envelhecimento, na ausência de soluções sustentadas de emprego, na rarefação de jovens que, perante a resignação de adultos e idosos, procuram outras paragens.

As respostas a este cenário passaram pela rede de universidades e politécnicos com que se prometia suster a diáspora juvenil, mas cujo impacte nas economias locais continua por avaliar. Outras tentativas procuraram tornar turisticamente atractiva a cidade e os seus recursos patrimoniais, mas os resultados são tão limitados como desiguais. Em outros casos, as cidades aventuram-se na alternativa cultural e multiplicaram-se os museus etnográficos locais como revalorização do “local”. Outras vezes, alimentou-se o simulacro quasi-urbano da cultura dos festivais e teremos hoje das mais altas densidades de cidades “capitais” (da chanfana, do móvel, da ginástica, etc.). Situações há em que a resposta à crise tem passado pelas infraestruturas e as redes viárias, acabando, às vezes, por reforçar a própria suburbanização – ou suburbanalização – investindo na construção (em vez da recuperação) e nos condomínios, nos espaços comerciais e parques tecnológicos. À imagem de excesso da periferia corresponde, no centro, um cenário de casas e fábricas devolutas e de espaços sociais obsoletos.

Enquanto singra a nova e inquietante narrativa da crise, os portugueses assistem à recessão das suas cidades e à desvitalização urbana do interior do país. Altíssimo juro este que estamos a pagar! Impiedoso spread! Inaceitável hipoteca!

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