José Rodrigues Miguéis

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Como ia dizendo, José Rodrigues Miguéis está hoje esquecido, ou quase, mas injustamente, porque ele é um escritor de primeira água, um dos grandes nomes do século XX, e é triste não se verem os seus livros à venda enquanto se transaciona contrafação literária por aí, a monte, em inúmeras Feiras do Relógio.

Artur Portela (filho) em plena campanha do Novo Romance, na década de 60, acusou-o de ser irrecuperavelmente queiroziano, o que não tem hoje nenhum sentido. Ao tempo era preciso romper com a estrutura do romance clássico, à moda dos realistas, mas isso já tinha sido feito por outros (Joyce, Musil, Kafka, Virgínia Woolf, Faulkner, para não falar em Robbe-Grillet e companhia, que ele andava então a promover). Era necessário fazê-lo cá, e Artur Portela meteu-se nessa campanha como numa roga de vindima. Era preciso romper, entre nós, com estrutura, sintaxe, temática, pontuação, ortografia, enfim, com tudo, de tal modo que se falou na «morte do romance». É certo que agora vemos o resultado do funeral desse género literário, tal como o século XIX o produziu ao mais alto nível. Mas isso, se é muito para a evolução que as coisas tomaram (e não só no romance, mas em todas as áreas da criação) a cinquenta anos de distância deve ser relativizado. Estamos na fase de perceber o cíclico destas coisas, e uma vez tudo “desconstruído”, começou já a recuperação de certas exigências narrativas, assimilando embora as novas possibilidades.

Esperemos que a hora de Rodrigues Miguéis volte, porque é hoje já um clássico. Não alinhava pelos neo-realistas ortodoxos, e isso custou-lhe dissabores, mas também não rompeu com a estridência de um Vergílio Ferreira, por exemplo. Como se sabe, esse entre cá e lá nem sempre é vantajoso. Mas ele não o fez por cálculo, mas por razões artísticas. E não tem sentido a crítica de Portela porque, por um lado, a qualidade navega por cima de todas as águas, e onde ela existe não há lugar para epígonos, por outro ele é muito diferente de Eça de Queiroz. Rodrigues Miguéis, homem formado na primeira metade do século XX, influenciado por Camilo, por Raul Brandão, às vezes “próximo” de alguns mestres russos, e tendo passado quase toda a vida longe da Lisboa, onde nasceu e foi criado, quase se pode dizer que, com os imensos recursos literários que tinha, não sentiu necessidade de enveredar por uma linha de rotura. A situação de emigrante, de longamente ausente, ao reforçar a sua veia evocativa e afectiva da Lisboa da sua infância, obrigou-o, de algum modo, a servir-se de uma estrutura clássica. Mas mais aparente que real. Porque ele foi formalmente bastante moderno. João José Cochofel, falando de “Escola do Paraíso”, refere a inovadora e «subtilíssima indeterminação» entre o autor e a personagem principal, e na «descontinuidade microscópica de pequenas manchas que, por acumulação, vão criando a ilusão de um fluir contínuo». Mas o melhor dele é, como diz ainda Cochofel, a sua «linguagem tão ágil e essencial que a narrativa não parece precisar das palavras para se apresentar ao leitor», ou ter o próprio Miguéis «o sentimento de que o leitor se deixará arrebatar sem saber como, sem ver as frases, as palavras».

Relativamente a Eça, Miguéis é menos formal, mais dúctil, mais psicológico, mais angustiado, menos irónico, e sobretudo nada cáustico. Mas tem uma cor, uma agilidade, um amor às pessoas e às coisas, uma aderência narrativa às histórias e às situações que o distanciam de Eça e o tornam muito mais moderno. É pois um autor a recuperar e a divulgar. Urgentemente.

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