“Lá faz primavera, pá/Cá estou doente/Manda urgentemente/Algum cheirinho de alecrim”. Regressava a casa depois de várias horas nas urgências do hospital. Do rádio do carro, ouvia-se a voz do Chico Buarque. “Que emissora é esta?” – perguntei, surpreendido. E ela respondeu-me, sorrindo: “É estranho, não é? E raro.” Mas muito adequado, pensei.
Horas e horas nas urgências confirmaram-me o que muitos amigos me diziam. O Serviço Nacional de Saúde já não é o que era. Os doentes amontoam-se e desesperam. Com o encerramento de serviços locais de atendimento duplicou o número de utentes no serviço de urgência do hospital central. Ao longo de várias horas testemunhei a imensa confusão e a falta de pessoal.
Ao meu lado, um doente cansado de esperar arrancou tubos e sondas, levantou-se da maca e foi-se embora para casa.
Um velhote merecia mais atenção, dois jovens médicos conferenciavam com a mulher de meia-idade que o acompanhava. Percebi que era sua filha e médica. Mas a deferência de pouco lhes serviu. Horas depois cruzámo-nos noutro serviço. O velhote tinha feito vários exames, depois ficou esquecido. Não havia pessoal para os atender. Enquanto médicos e enfermeiros corriam de um lado para o outro, recordei o que um amigo, médico no hospital, me dissera poucos dias antes: “Já tem acontecido deparar-se com cadáveres de doentes esquecidos nalgum canto.”
“Eu queria estar na festa, pá/Com a tua gente/E colher pessoalmente/Uma flor do teu jardim”. “Tão estranho! Outra era. Longínqua…” – comentei. “Então não? Lá bem longe. Mas também cheira a futuro” – respondeu ela. “…Manda urgentemente/Algum cheirinho de alecrim” “Vês?” E eu ouvia. “Os sonhos têm cheiro”. E eu muitas dores – “Claro que sim!”
“Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar”… “Quantas léguas nos separam desse tempo de primavera? Os cinco militantes da juventude comunista levados há poucos dias para a esquadra quando procediam à pintura de um mural, mesmo depois de terem dado a ler aos agentes da polícia o acórdão do supremo que garante a legalidade do que faziam, aliás um direito constitucional, devem ter sentido que há um mar imenso a nos separar, não achas? Sobretudo depois de terem sido insultados e humilhados, com alusões ao facto de serem comunistas como se fossem criminosos. E como se não bastasse, o “capo” de serviço obrigou-os a despirem-se completamente! Curioso que só mandou despedir as quatro raparigas, as roupas do único rapaz do grupo talvez não fossem tão subversivas…Tanto e tanto mar a nos separar, não é?” “Se é. E em que televisão, rádio ou jornais ditos de referência ouviste ou leste a notícia?”
“Sei também que é preciso, pá /Navegar, navegar”– cantava o Chico.”Rima com Lutar”. E ela acompanhava-o, baixinho. Torcido com dores, confidenciei: “É preciso. Muito!”
One Comment