Maldição de uma vida longa

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Quando ouço pessoas de idade a relatarem os seus problemas de saúde, umas vezes graves, outras, felizmente, nem por isso, muitas terminam dizendo, “é da idade, já vivi muito”!

Uma explicação muito razoável, porque a idade é a principal causa de doença e de morte. Embora as reações nem sempre sejam coincidentes, muitos confessam que os males de saúde não são os mais preocupantes, mas sim os da alma.

E contam as tragédias que vivenciaram com os seus familiares, filhos e netos, mortos precocemente, ou as vivências atuais em que muitos entes queridos estão a ser vítimas de maleitas diabólicas. Quando contam estas tragédias, vê-se perfeitamente que os males do corpo deixam de ter significado face ao sofrimento que revelam, culpando a morte por não os terem poupado à maldição de uma vida longa. E muitos choram!

Estes acontecimentos emergem periodicamente no meu espírito, obrigando-me a rever muitas conversas que, gravadas a ferro e fogo, deixam as suas marcas, marcas da maldição de uma vida longa,

No final de um dia trabalho fui arrastado para uma livraria. Uma forma de acalmar e de encontrar amigos, aos montes, que, com as suas obras, têm o condão de dar respostas a perguntas perturbadoras e fornecer meios que ajudam a viver. Escolhi dois. Perturbador o primeiro, “Beatriz e Virgílio”, de Yann Martel, esclarecedor o segundo, um romance de Salley Vickers, “Onde três estradas se encontram”. Neste último, podemos ver, ouvir e sentir os últimos tempos de vida de Freud, um fumador inveterado de charutos – chegava a fumar vinte por dia, mesmo depois do diagnóstico dos seus tumores do palato e maxilar, fontes de sofrimento horrível durante dezasseis anos, e, frequentemente, tinha de usar uma mola de roupa na boca para poder introduzir o charuto. Quando foi operado pela primeira vez, o seu neto de quatro anos foi operado às amígdalas. Avô e neto compararam os progressos das suas intervenções. Ao fim de quatro meses o miúdo morreu. Foi a única situação que o fez chorar, entrando em depressão profunda. A seguir morre-lhe a filha, a mãe do neto. A descrição do seu sofrimento arrepia qualquer um, mas estou convicto que as dores, as hemorragias, as dificuldades em falar ou em comer, desapareciam face à dor da lembrança da perda do neto e da filha.

A maldição da vida abate-se com uma impunidade obscena em qualquer idade, mas à medida que envelhecemos, esfrega as mãos de contente porque sabe que é material de primeira, vulnerável, frágil e apetitoso.

A este propósito, maldição da vida, que muita gente cultiva, ao rogar pragas aos seus semelhantes, obriga-me a rever mentalmente uma imagem que um dia me impressionou, o rei de Espanha a passear com Adolfo Suarez num jardim, ambos de costas e com o braço real, protetor e amigo, sobre os ombros de um homem atingido violentamente de demência precoce, e que contribuiu decididamente para a democratização do seu país.

Um homem que viu morrer mulher e filha com cancro e uma outra sofrer a mesma doença. A demência roubou-lhe a memória da miséria em que chegou a cair e a dor da perda dos familiares, mas também lhe roubou o sentido a daquele gesto de amizade. Uma maldição da vida.

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